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  • Universo 75

Análise de Nu Varejo por Paula Ana e Mari Ferreira

 

PARTE I

 

LEIA Ú RAP: 5 ANOS DE NÚ VAREJO

Paula Ana¹


AlendaSz e Laraapio produziram e lançaram há 5 anos o álbum Nú Varejo, o segundo álbum solo de AlendaSz. O primeiro também teve boa parte das faixas produzidas por Laraapio, chamado O Crime na Cor (2017), lançado pelo selo Ibori Studio, por onde AlendaSz também lançou outros trabalhos junto à banca Us Pior da Turma, que integra com Aganju e DJ Felipe.


A trajetória de AlendaSz coroa Nú Varejo como um dos maiores clássicos do rap 075, com faixas marcantes como Nú Varejo, Rap Secular, Abandonados e Mal Pagos e Blindados Pelo Medo. E ao mesmo tempo, a parceria e conexão artística com Laraapio se consolida e apresenta sua face mais alinhada e sintonizada.


Não dá para falar dos 4 anos de Nú Varejo sem mencionar a Intro Medo - agoniante, perturbadora, imersiva e demonstrativa do que é o álbum. 


Na faixa, o arranhado do beat, acompanhado dos samples de vozes e uma construção sonora que nos faz imaginar uma cena: Laraapio dormindo, toda a perturbação é um pesadelo, e a voz de AlendaSz o chamando e batendo na porta, tenta acordá-lo. Ele ouvindo longe, numa paralisia do sono, demora a acordar, até AlendaSz gritar: Laraaaaaapio, desgraça! É Nu Varejo, porra!


E convocar Laraapio para a produção dessa obra ímpar, que narra os desafios da vida de quem vive “no varejo”. Assim abre a segunda faixa, que leva o nome do álbum e testemunha a aproximações entre o tráfico negreiro de povos escravizados para a América, e o tráfico de drogas em sua forma varejista, sobretudo no que diz respeito aos principais personagens/alvos das suas duas formas: homens negros. 


“Nos trouxeram no tráfico e hoje chamam de tráfico a tentativa de cobrarmos nosso preço”


AlendaSz opta por narrar o varejo além das corriqueiras versões simplistas e punitivistas que introjetam nesses homens e meninos uma visão de vilania, maldade, monstruosidade e os afastam da ideia de sujeitos, humanos e, portanto, somente os julgam e os sentenciam. 


Ao mesmo tempo em que diz que “foi no varejo que ele entrou pelo sonho, de melhorar a vida daquela senhora”, AlendaSz diz que “somos muito pro seu quintal, e vamos varejar as táticas [...]”. Dentro da mesma faixa, AlendaSz mostra a necessidade e sensibilidade por trás de uma “escolha”: melhorar a vida de uma mãe, e afirma que aquela mesma sociedade que produz o varejista e o coloca como alvo, o teme intensamente.


Ainda na mesma faixa há várias explicações dos porquês e como a sociedade racista, marcada pela colonização e pela escravidão, produzem e lucram com a violência que envolve e atinge os que estão à margem, na ponta, no varejo. Necropolítica, falta giz no quadro social, a dor que gera riqueza, as telas que distraem o povo negro, Estado de exceção… tudo aquilo que está por trás de um “corpo-infância e vinte dolinhas de sonho”.


O “menino meu guri” na Culatra do Mundo é referido como o olhar de uma mãe, aquela que o busca quando o perde, lembrando do “sorriso livre de condenação, menino bom…”. A vida descrita em Nú Varejo é também atravessada pela perda e pela dor de uma mãe desesperada que questiona e pede “cadê você menino que a vida levou? Divulga aí que o menino não voltou…”.


A virada de dor para ódio consciente direciona o álbum em Rap Secular. AlendaSz propõe aos ouvintes que estes leiam o rap, e sua escrita vibra o acerto de contas, esquematizado, organizado, olho a olho - a frase que vira lema dessa guerrilha contra o caldeirão do poder é grito certo: SE MEU TERRITÓRIO FOR POLITIZADO, POLÍCIA NENHUM MAIS VAI ACHAR ARREGO. Será que assim a conta desse comércio bate? A conta dos corpos abatidos fecha? 


Melhor do que tentar descrever o quanto AlendaSz tem fundamento no que diz, é você ler o que ele escreve na faixa:


“Anfiteatro do caos, gramática odiosa e letal, impediram várias narrativas, na morte ou na vida, somos sempre o mal; redatores de toda desgraça, no sadismo que o lucro detalha, violência como afirmação, inclusão, foi isso que restou nas minhas áreas. Guerra sangria, Brasil tumular, ONGs e ONU nunca vão vingar, saquearam nossa liberdade, mataram a vontade, é rap secular.“


Essa é a perspectiva dos abandonados e mal pagos na desigual Bahia, desempregados e punidos, em territórios saqueados e blindados pelo medo. Com MC Tico (Tico vive!), AlendaSz canta a favela real, a favela mundo, “mais loka do que simplesmente a palavra gueto”. O álbum fecha dizendo que “com canetas e cadernos estragamos mais que fuzil”, no beat em que Laraapio, como um bom larápio, sampleia o bolero Amargo Regresso, do grupo Os Tincoãs. Nú Varejo é um disparo acurado, e 5 anos depois segue com a mesma importância e verdade. 



 

PARTE II

 

"ELE CRIANDO O RAP, PRA VER SE O RAP AINDA LHE CRIA, É NÚ VAREJO" 


Mari Ferreira²



Meninos masculinizados pelas ruas, masculinizados pela dinâmica do varejo, existências mediadas pelo crime. Relações tecidas com sangue sob o hálito quente do ferro das peças. Lealdade construída do encontro entre olhares, bicos, desconfianças. É aqui onde se começa a tatear e delinear na discografia de Alendasz, as cartografias do que mais tarde leríamos como Zonas de Morte. Os versos do álbum trazem muito mais do que pode ser traduzido em palavras, aqui meninos negros fluentes na linguagem do silêncio se encontram e se entendem, falam, confluem. Em Nu Varejo saltam-se os corpos atravessados pelas  zonas límitrofes, com toda sutileza e sanguinolência que esse processo exige, sobretudo, demarca corpos, define existências, afinal, o que faz os meninos negros serem homens negros? O que garante uma sobrevida? O que os agarra nesse mundo enquanto todo o entorno os dilacera? A masculinidade negra é masculinizada sob processos de evocação da violência e destroços da masculinidade colonial.


Nessa obra, o varejo é, antes de tudo, um contra ataque, uma malha densa em que os perdidos da trama social se encontram, onde meninos se envolvem quando se sentem mais que meninos e menos que homens, quando buscam signos e códigos que façam com que seus corpos sejam mais que corpos, mais que números, que transcendam lugares sociais e estatísticas. Nu Varejo é onde se trabalha o ódio, onde se trabalha com ódio, é onde o amor é só mais um motivo pra ter ódio, é como os que falam a língua do silêncio se reúnem para se comunicar da sua própria maneira, com as ferramentas de trabalho que lhe são expostas, é onde o território inimigo se materializa no corpo, onde o Brasil se instala dentro do próprio sistema interno. 


O Brasil enquanto projeto de país é uma continuidade de colonialidade, nunca houve uma ruptura com as normas, é um recorte de excessos e maquiagem nas rachaduras. É a materialização do conceito de disgraça. Suas dimensões territoriais é apenas uma grande jaula dinâmica e fluída, o seu conceito é o exercício da brutalidade, mutilação e genocídio. O teatro do Brasil pós-racial é uma distopia macabra e assustadora que carnavaliza carnificinas diárias. Esse país é sempre escravo e escravizador, confabula e poda suas próprias perspectivas de liberdade. O Brasil é um sistema retroalimentado de aprimoramentos de violências.


Nu Varejo desvela essas violências do mundo pós mar, traz consigo a violência como a linguagem universal,  a violência de fora não só reverbera dentro, agora já entende-se a violência é como linguagem universal porque está instalada dentro, se materializa enquanto ficção de poder e se capilariza por essa ambiguidade. Fenomenologicamente as múltiplas violências é o que costura a malha de neurônios que reveste o corpo negro, e quando essa malha se movimenta toda uma carga cimentada de traumas se movimenta com ela. 


O sistema de distribuição de poder e violência é quem dá régua e compasso para o que se pode imaginar como violência válida e possível. Os envolvidos Nu Varejo não estão embebidos pela substância que corrói a existência dos corpos e justifica as mortes dos envolvidos com o tráfico de drogas, Nu Varejo abre uma janela de experimentação que eclode com essa lente que determina quais corpos podem ser movidos para o descarte.


Aqui o tráfico não é lido como uma vilania dentro das comunidades porque a obra inverte o monopólio da violência, a subjetividade apesar de sitiada pela supremacia branca assume uma nova roupagem, a economia da ameaça e ecossistema do terror são reelaborados nas agências e coreografias de poder a partir do momento que a obra propõe reescrever o que é lido socialmente enquanto violência legítima, Nu Varejo reconfigura a noção de violência legítima. 


Aqui os beats, as letras e a ambientação das tracks, conclamam para o exercício de proliferação de outras narrativas sobre o terror que nos cerca, é como se a análise do terror na leitura do rap de Alendasz seja também a elaboração de dispositivos que nos permitem transpor o lugar de atravessado por múltiplas violências reposicionando memórias e arquivos sobre a vida, concebendo novas formas coletivas de atravessar o terror, o medo, o ódio. 


OUÇA AGORA O ÁLBUM NÚ VAREJO DE ALENDASZ





 

¹ Multiartista dos interiores da Bahia, de Itapiru/Teofilândia. Lançou o EP solo PEDRAG’OURO e o EP colaborativo Negreira em 2021, é artista visual e produtora cultural. Aprendendo a escrever o que aprende.


² Autora do livro de poesias DAREN (2021) e do livro de contos PIVA (2024), coordenadora criativa e curadora artística. Também é artista multilinguagem, experimentalista e artesã da Balangandã. Articuladora cultural desde 2014, condutora da Biblioteca Comunitária D. Edite Rodrigues, além de ser podcaster e editora do AKANNI podcast, gestora do acervo histórico-fotográfico e impulsionadora do Baile Pelo Certo e produtora do Baile Fuzuê. Coordena o núcleo literário do UNIVERSO 75 e é Social Media do Ibori Studio.




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