top of page
  • Sávio Oliveira

TIAMATH: CUSPINDO FOGO NA CIDADE



Por Sávio Oliveira


Não é novidade que o Universo 75 tem sido um laboratório musical e político fortemente disruptivo da manada artística da nova geração. Atestando sua capacidade, reinventando suas produções e sacudindo os graves, a estreia da Mixtape Tiamath desafia, junto com toda referência e estética criativa da obra, os limites e as possibilidades dessa fábrica de monstros em corpo de coletivo.

O Universo 75 se insere também como um espaço literário a partir das diversas produções em contos feitas sobre as obras fonográficas. A ideia de adaptação, por exemplo, do rap para o conto, é algo totalmente inovador e desconhecido no Brasil. Mesmo inaugurando tais gestos literários inovadores, ainda não parece ser o bastante para eles. Essa fábrica de monstros ainda concebe produções ancoradas em contra-narrativas no campo literário ao enveredarem por temas disruptivos e trazerem enredos problemáticos sob a estética de um pretuguês. Além disso, essa contranarrativa literária tende a apresentar anti-heróis, sujeitos, figuras e temas problemáticos a partir de uma estética inovadora e criativamente caótica.

Muito da produção do Universo 75 se assemelha ao que, no campo literário, entendeu-se por Literatura Marginal ou Literatura Underground. A Marginal é gestada desde a década de 60 no Brasil, quando em período de ditadura, artistas, escritores, poetas etc., foram obrigados a reinventar suas produções para driblar a censura, fazendo surgir diversos modos de adaptação até então descartados ou desconhecidos. Não diferente, o Universo 75 utiliza da demanda do caos para arquitetar produções. Por sua vez, no campo da Literatura Underground, a produção literária rejeita projetos de padronização em prol de evidencia e reconhecimento, tece críticas à estética da dita “cultura popular” e aponta suas lacunas e contradições. Ela é pautada numa produção que tem por base as vivências reais de não-sujeitos ou mesmo de sujeitos a partir de um lugar alternativo, deslocado da romantização. Fazendo jus a esse campo literário, em entrevista, Aganju Uh Anti Influencer atesta isso quando evidencia que Tiamath é construída, aqui enquanto obra-EP, por meio de “[...] personalidades e experiências de masculinidades negras distópicas dentro de um contexto de violência, de genocídio. Então, o processo criativo são pedaços de várias experiências tanto minhas quanto experiências que eu vi, que eu ouvi, que me disseram. Todas experiências narradas e construídas dentro de sociabilidades de homens pretos e para homens pretos. Eu fiz essa obra muito direcionada para homens pretos, tá ligado? Em todos os sentidos”.

Essa corrente literária do Universo 75 erige sua base não só por abordar temas disruptivos, mas por mobilizar mecanismos de construções diferentes, acentuando uma identidade não-urbanizadora, renegando uma sonhada aprovação pela qual outras produções certamente performam, por vezes mediocremente, para conseguir. Subsumindo tal perspectiva, Aganju, descreve o Universo 75 como “uma equipe de produtores, Mcs, Ilustradores/as [...], tudo isso também por uma frente literária, toda obra do universo 75 a gente tá transformando em conto”.

Em termos históricos, Tiamath é uma figura mitológica que representa a deusa do caos e da criação, não atoa as figuras que lhe simbolizam são dragões com a fusão de diversas e diferentes cabeças. Personificada como mãe de tudo, sobretudo do céu e da terra, sua existência está atrelada à vingança por amor – caos – e ao uso de diferentes armas – criatividade – para se defender, unindo potência e sentimento em seus feitos. Efígie das mitologias dos povos mesopotâmicos, Tiamath ganhou representação no campo animado, tornando-se conhecida pelo desenho “A caverna do dragão”, e entre os diversos elementos atribuídos à sua existência na mitologia, o dragão de 5 cabeças tornou-se a sua imagem mais emblemática, sobretudo pelo seu papel – animado e histórico – de terror. Cabe lembrar que, pelo que se conta, cada cabeça de Tiamath cospe um tipo de chama em forma de elemento natural dependendo da necessidade, contexto e dimensão, tudo depende do para o quê e quem se luta.

Observa-se que a figura de Tiamath, conforme reiterado na sinopse da obra, está presentificada não apenas no conjunto de faixas que compõem este lançamento, mas na proposta territorial do Universo 75, onde as multifunções do Mc e de suas produções são seu passaporte para uma nova dimensão. Nas palavras de Aganju, o universo 75 busca: “[...] trazer essa ideia de cena para um outro prisma, de cena subterrânea, de anti-cena, [...] uma proposta fonográfica e artística que não evidencia tanto a figura do Mc enquanto artista [...], evidencia uma proposta de multimeios artísticos, onde o Mc só tem validade se ele estiver linkado com a ilustração ou linkado com a construção de um conto, linkado com a construção de sonoridades que tragam um ar cinematográfico, que é a grande proposta dos beats [...]”.

A variedade de beats e samples que compõem a obra, por exemplo, tem inspirações em desenhos animados ou ainda, como a de faixas mais densas em termos de crítica, estão sujeitas a inspirações da Old School, como Rakin e Krs-One. Com isso, usa-se especialmente elementos de bateria, conforme o próprio produtor, ambos desenvolvidos entre 2019-2020 e testadas e regravadas das mais diversas maneiras – inclusive com público, o que o fez canalizar a estética da recepção das faixas, selecioná-las e incorporá-las no EP.

Só com isso, já se vê como a capa da obra explora os limites e faz jus ao âmbito da criatividade. Incorporado em Tiamath, a capa da obra traz uma a figura de um homem negro com roupas largas e perfil de MC, tendo por acessório uma Shoulder Bag da marca Universo 75; em sua mão, a grande arma dos Mcs, um microfone; na parte superior do seu pescoço, 5 cabeças em forma de dragões, cada uma, respectivamente, das cores preta, verde, azul, amarela e laranja, esta cuspindo fogo na mesma tonalidade que sua cabeça. Essa criação e ilustração ficou por mão de Joadson Meira, ou popularmente Joatsx, jovem negro, ilustrador digital, animador e designer. Joatsx foi também ilustrador de obras do Universo 75, como na produção da indescritível capa de Boom Classics, obra de Big Troll – vale a pena conferir.

O responsável por incorporar as cabeças de Tiamath nas letras e vocal é o Mc Aganju Uh Anti Influencer, que também gravou toda obra no Ibori Studio, produziu os beats e articulou o processo de criação e disponibilização da obra nas plataformas. Aganju é liricamente conhecido pela sua irreverência nas letras e no flow, sobretudo por escancarar o caos das vivências musicais, bem como raciais, undergrounds. É ele quem dá voz aos dragões que cospem fogo nos ouvidos de quem ouve a obra. Essa incorporação de Tiamath em um jovem homem preto à frente do seu tempo e enclausurado no Recôncavo Baiano faz indagar quais são seus atributos, suas chamas e seus dilemas, ambos destrinchados nas 6 faixas que se seguem. Vejamos, portanto, no que tange a incorporação de Tiamath neste EP e quais chamas serão despertadas.

A primeira faixa, “Cuspindo fogo na cidade”, é uma introdução que apresenta dinâmicas de sentimentos intermitentes que tomam uma cabeça criativa. Aganju incorpora o primeiro dragão, este personificado pela chama da fúria imersiva, transmitindo sentimentos que contagiam pelo balanço e produzem a imersão no contexto da produção criativa, facilitando a receptividade e a interpretação. A partir de um estilo Reggaeton, a música dançante performa um convite à imersão da obra, um convite a provar de uma experiência caótica e que se promete, paradoxalmente, prazerosa. Aqui, a descrição de Tiamath serve de apresentação do EP, uma convocação ao submundo.

Na segunda faixa, “Rappers aplaudem qualquer merda”, o segundo dragão cospe o fogo da crítica. Aqui, Aganju explora a diferença latente entre o processo criativo de um rapper e de um Mc. Na terra onde as letras dançantes, inclusive no rap, são feitas endereçadas aos aplicativos de flashvideo no intuído de virarem chicletes que logo serão descartados, rappers têm produzido cada vez mais músicas para atender às novas demandas do mercado fonográfico. Nessa faixa, o Mc aponta como esses rappers têm precarizado as letras em prol de holofotes e um lugar fortuito na academia brasileira do mainsteem. Aspecto notadamente comportamental do campo literário marginal e underground, conforme supracitado.

Essa chama de crítica a um sonho americano abrasileirado é muito bem colocada por uma produção do Universo 75, pois condensa observações por intermédio de inovações líricas surpreendentes. Embora pareça uma música contínua, isto é, com apenas um beat, ela se divide em alguns momentos específicos. O primeiro momento, após o refrão dinâmico, apresenta como o Mc de rua normalmente desencadeia suas letras. O desenho das necessidades cotidianas, os sentimentos amorosos que o invadem, o contato direto com drogas de verdade, sem romantização, a sinestesia do corpo que fala e do suor que rima, dentre outros elementos, remontam o que Aganju descreve como um processo original de criação, feito no caos e sonhando com a desordem. Rimas insurgentes saltam dos papeis como monstros para salvar um universo específico. Após mais uma leva de refrão embalado em risos e ironia, o segundo momento vem à tona: a caixa toma lugar no beat e serve de leito para um refrão cantado de forma mais alucinante, já incendiando novamente o refrão a partir de um canto mais agressivo. Embora não venham novas estrofes, essa estrutura musical na faixa faz toda diferença, constitui no primeiro momento o caos e, no segundo, aflora a criatividade de maneira gráfica e sonora.

Sincronicamente, a terceira cabeça de dragão, “Meus manos não são niggas” tem a chama disruptiva. Essa faixa retoma a crítica da antecessora ao sonho americano. Nigga é um termo racista usado especialmente nos EUA e significa negro ou preto, sobretudo porque vem sobrepujar o termo nigger, usado no contexto colonial para se referir a escravizados. Entretanto, jovens negros corriqueiramente usavam e usam essa expressão entre si como forma de jogar com o conjunto de sentidos que o termo representa(va), chegando até a ser uma expressão para denominar “irmão/brother”, um dos meus. No campo musical, nigga chega ao Brasil como palavra ressignificada, mas sem tradução, sendo usada por jovens para se referir a “amigo-negro”, assim como ocorreu com o noir/noite ou como fizemos com o negro/nego para dar sentidos positivos entre nós pretos às palavras usadas no sentido racista. Como nem tudo são flores, rappers no Brasil usam a expressão “my nigga” – que era antes um termo para “meu escravo” – para se referirem a um perfil racial e de gênero que lideram as estatísticas de morte, suicídio e situação de rua, ou seja, aos jovens homens negros. O que se popularizou como nigga no Brasil é também um termo problemático em outros territórios, palavra adoçada nas letras de rappers para tentar espelhar um perfil estereotipado de homem negro gangster americano, drogado, traficante e, a partir disso, irmão. Ou seja, ser irmão de um nigga ou ser o próprio nigga proposital e liricamente seria positivo para a indústria musical que ovaciona quem paga de “o mais gangster do playground brasileiro”.

O nome da musica e refrão de apenas um verso “meus manos não são niggas” problematizam a palavra e ancoram a crítica ao modo rapper de ser. A crítica ao termo reflete sobre o lugar do homem negro nessas abordagens musicais e sociais, seus reais sonhos, o que realmente são, quais problemas realmente têm, quais desafios enfrentam na diáspora sangrenta. No final, originalmente, em vez de nigga, o Mc opta por se referir a esses sujeitos-irmãos como ‘manos’, os reais e verdadeiros alvos de um plano de genocídio em curso, mas sob outro horizonte, no campo insurgente e irreverente incabível aos estereótipos de agendas esvaziadas de sentido político.

Temos então dois termos para dois sujeitos diferentes, ainda que com perfis de raça e gênero igual. Niggas para homens negros em busca de dinheiro, drogas e mulheres. Manos para homens negros depressivos, encarcerados, abandonados. Aqueles manos que Garvey e Bob Marley eram e representavam em vida e discurso. Não obstante, um beat sombrio toma esse terceiro dragão, o da chama de ódio. Um beat com um teclado evidente de fundo que dá coro a um certeiro boombap clássico inerente ao peso das letras.

A quarta faixa, “Interlúdio”, entra em cena o dragão da distopia, pois é um interlúdio naturalmente jocoso conduzido sob a empolgação e o riso dUh Poeta de Aço, Neuro Nego. A narrativa de Neuro sobre suas percepções da obra é conduzida sob um beat de Billy Crânio, Mc e produtor musical também integrante do Universo 75, mentor da Home Studio Sujeira Rec.

Como um Mc de mãos cheias, Neuro, com seu riso, contagiante discorre sobre como ilustres artistas, produtores e Mcs como Aganju e Troll conseguem promover obras inovadoras e criativas sem precisar repetir as mesmas formulas e pautas, driblam o dilema da repetição e da “limpeza” que quase sempre exige peneirar as sujeiras das ruas, as lamas das contradições que dão cor à estrada de suas vivências. Neuro explora como as faixas trazem uma distopia de modo escancarado sem ser cansativo. A agressividade ponderada e as facetas das contradições das identidades de likes atuais - que faz sujeitos valorarem seus traços, mas não os seus iguais - são pontos ironicamente destacados pelo espontâneo interlúdio.

A quinta chama vem embalada por um afrobeat diversificado com um jazz. Essa faixa é a celebração da obra, detalha a identidade comunicativa do coletivo, especialmente do Mc. Algo intrigante na faixa é a celebração a Exu, o mensageiro, surgente no meio da faixa de forma cantada. A reverência transmite uma energia revigorante e perspicaz, por isso a quinta cabeça tem a chama insurgente. Não só insurgente de forma a reivindicar uma contranarrativa sobre a estrutura do coletivo, mas a descrição do entendimento da filosofia HIP-HOP, isto é, fecha com um posicionamento embalado no afrobeat, avisa o caos que é sem perder de vista as potencialidades da sua organicidade afetuosa, celebre personificação mitológica de Tiamath.

A faixa bônus, sexta e última, finaliza a obra com um beat tenebroso, contém a chama do medo, por conseguinte, os timbaus avisam que lá vem aquele modo bombepeano de existir tão característico das obras do Universo 75. O baixo, a caixa e um sample rudimentar se conectam a um assobio, dão cadências para uma energia aterrorizante que vai conduzir críticas também encorpada nas faixas anteriores: ao modo rapper, ao sonho americano/brasileiro, aos pretos fingidos, à hipocrisia, aos esforços que empurram elementos do movimento Hip-Hop a se render a uma supremacia brakkka. Essa última cabeça de dragão tem a chama da intensidade. A faixa vem aterrorizar os amantes de algoritmos aderentes da fake cena. Ela vem contrapor o comportamento compulsório e egocêntrico das faces identitárias rendidas ao capitalismo, à aceitação, que regem sua existência a uma lógica de mercado sob jus de uma falsa memória histórica. Como a própria letra avisa: “Universo 75, 2096”, muito à frente do tempo para que todos entendam o conjunto de críticas, trazidas por um monstro de 6 cabeças, endereçadas a um sobremundo de pretos fingidos e brancos retintos.

A fusão dos seis monstros dá corpo à obra Tiamath, dá corpo às masculinidades negra distópicas bem distantes dos links e dos likes, das agendas e das políticas de representação, mas muito próximas da bala da bala. Um monstro de chamar imersivas que coloca em suspenso sua própria filosofia de vida e existência a partir da contradição. Neste EP, a entidade Tiamath é engendra uma referência que, diferente do que vimos corriqueiramente, não serve tão somente de suporte referencial de criação, ela é a própria criação artística. A compulsão das seis faixas que conversam entre si, a criatividade sobre as pautas abordadas, a ironia que endossa os beats, o riso dos interlúdios, o comportamento da bateria, a escolha minuciosa de samples, as onomatopeias, os boombeps tenebrosos, os afrobeats, o reggaeton dançante que condensam dinâmicas da crítica e da existência caótica de jovens homens negros, entre milhares de outros fatores, brincam, jogam, gingam evidenciando as potencialidades desse universo paralelo no Recôncavo Baiano. “[...] No mais, escutem Tiamath, primeira obra do Universo 75 [de] 2023, e um mês depois do EP Tiamath, vamos estar lançando o conto ‘sou uh dragão Tiamath’”.


TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA DE SÁVIO OLIVEIRA COM AGANJU UH ANTI INFLUENCER ACERCA DO EP TIAMATH: CUSPINDO FOGO NA CIDADE (2023)


1. Sávio: A seu ver, mano, qual a proposta geral da obra?


Aganju: Tiamath: cuspindo fogo na cidade. Essa obra faz parte, na verdade, da continuidade do Universo 75. É mais um capítulo da saga do Universo 75. E o Universo 75 nada mais é do que uma equipe de criação que junta aí produtores musicais, Mcs, ilustradores, ilustradoras, beatmakers, tudo isso dentro de um contexto de juntar todas essas artes em um Universo que sintetize todas essas produções não só em fonogramas, mas em ilustrações, e também em uma frente mais literária. Toda obra do Universo 75 e das áreas 75, de maneira geral, a gente tá transformando em contos. Então Tiamath vem nesse contexto, somando mais um capítulo do Universo 75. E a proposta geral da obra… Tiamath (...), Tiamath, irmão, é - até pra saber um pouco da proposta geral, a gente precisa saber de onde vem esse nome. Tiamath, primordialmente, é uma divindade dos antigos povos mesopotâmicos. E posteriormente essa divindade, que originalmente era considerada um dragão, inclusive um dragão, vamos dizer assim, numa perspectiva híbrida, era um dragão que poderia ser tanto homem quanto mulher, o que ele quisesse. E posteriormente essa divindade que é Tiamath, de onde vem a tradição do nome, ela foi incorporada pela cultura pop através dos jogos de RPG, na década de 80 e, posteriormente, dos jogos de RPG se tornou um desenho animado, que foi Caverna do Dragão, onde tem o personagem Tiamath, que é um dragão de cinco cabeças. E, basicamente, Tiamath, vamos dizer assim, ele é um coringa na obra, ele é um personagem que todos temem, tanto os vilões quanto os heróis, então ele se insere como um anti-herói. Então, Tiamath, ele vem nessa perspectiva de construir anti-heróis dentro do contexto do Universo 75, e Tiamath, ele é um anti-herói construído dentro de uma perspectiva muito baseada, vamos dizer assim, em temas disruptivos; em temas distópicos; em temas que reverberam sobre o próprio caos. E Tiamath, para além de uma construção, vamos dizer assim, divina e também da cultura pop, através do desenho animado, do RPG, é também do ponto de vista simbólico, assim, uma representação também das próprias masculinidades pretas, sobretudo das masculinidades pretas que são historicamente taxadas como vilões ou anti-heróis a serem perseguidos, a serem controlados, a serem temidas. Então, Tiamath é um alter ego para as várias representações de masculinidades pretas, sobretudo aquelas que performam e realmente trazem medo, temor ou receio para a maioria das pessoas. Então essa obra, Tiamath, eu tentei um pouco trazer esse ar de anti-herói, né? E é um anti-herói, vamos dizer assim, que destila as suas rajadas, seja de fogo, seja de gás, seja de gelo ou seja de relâmpago através do que a gente conhece como cena. Então Tiamath vem como personagem que rima nas margens do que a gente conhece como cena, ele traz não temas, como por exemplo na track Meus manos não são niggas, né mano; na era dos niggas, onde todos os pretos querem ser niggas, e niggas basicamente é uma palavra que tem uma tradição extremamente escravocrata, Tiamath ele traz “meus manos não são niggas”. Tiamath ele traz temas como, por exemplo, na track Lágrimas de like, onde ele discute um pouco, vamos dizer assim, os limites da solidariedade entre os próprios pretos inclusive. Então a proposta, vamos dizer assim, criativa de Tiamath é trazer um pouco de não-temas, temas que estão à margem e sempre numa abordagem, numa perspectiva não só subjetiva, mas sobretudo disruptiva tanto do ponto de vista das rimas quanto do ponto de vista dos beats. Os beats, por exemplo, a gente começa com um ragha, né? Posteriormente, têm alguns beats que estão mais dentro do enquadramento de um rap, de um boombap, mas há também um afrobeat, tá ligado? Que é a track Sou o dragão Tiamath, que mistura ali características não só rimáticas, mas sonoras do afrobeat com o jazz também. Então é uma obra bem caótica, tá ligado? Bem caótica assim representando essa diversidade de Tiamath do ponto de vista de suas cabeças, né? Então é uma obra que, ao mesmo tempo em que ela traz um caos, uma desordem, ela tem uma proposta também de terrificar, de trazer, vamos dizer assim, essa ideia de cena para outro prisma, né? Seria uma cena mais subterrânea, uma cena... uma anti-cena! É trazer esse esse caráter de anti-cena do Universo 75, que é um tipo de proposta, por exemplo, fonográfica e artística que não evidencia tanto a figura do Mc enquanto um artista, o Universo 75 evidencia uma proposta de multimeios artísticos, onde o Mc, ele só tem validade se linkado com a ilustração, linkado com a construção de um conto, linkado com a construção de sonoridades que tragam um ar cinematográfico, que é a grande proposta dos beats, né? Os beats, tanto do ponto de vista do BPM quanto do ponto de vista dos samples que eu pesquisei, trazem uma atmosfera meio cinematográfica, sobretudo de um filme de ação, bem pra frente, bem tenso. Uma ação também que em alguns momentos traz um certo drama, como por exemplo na track Meus manos não são niggas ou mesmo Lágrimas de like. Então, o apanhado geral da obra, vamos dizer assim, é tudo isso que eu disse. Então não é uma obra que tem a proposta única, é uma proposta de, sobretudo trazendo a tradição do próprio Universo 75, multirreferenciada.


2. Sávio: Qual track você mais brisa e por quê?


Aganju: A track que eu mais viajo, tipo assim, não é nem tanto a track que eu mais gosto do ponto de vista sonoro e de letras, é a track que eu mais já lancei ao vivo. Porque tem uma questão também, irmão, esse EP foi gravado entre os anos de 2019 e 2020. Algumas dessas tracks, eu escrevi desde 2017, tá ligado? São tracks que eu já soltei em algum momento, assim… ao vivo. E a track Meus manos não são niggas, tipo assim, é uma track que ao vivo é loucura, tá ligado? Porque, tipo assim, desperta logo uma reação e uma afinidade com os homens pretos presentes no recinto, tá ligado? E do ponto de vista sonoro, é um bate cabeça da disgraça, tá ligado? Mas ao mesmo tempo, a track que dá início ao EP, que é a track Cuspindo fogo na cidade, eu também gosto muito dela porque é uma track mais de pista, né? Eu já lancei ela ao vivo também, ela é uma loucura, tá ligado? A galera dançando em cima daquele Raghaton, daquele ragha ali com aquelas ideia muito, vamos dizer assim, pra frente. No entanto, mesmo essas tracks tendo essa particularidade, uma track que eu gosto muito mesmo é a track [risos] Rappers aplaudem qualquer merda, até mesmo pelo nome. Esse nome: rappers aplaudem qualquer merda é bem sintomático do ponto de vista do que é a cena, vamos dizer assim, do rap contemporaneamente, sobretudo no que diz respeito ao Brasil. E é uma track muito inspirada, no ponto de vista rimático, em Krs-One, porque é uma track… por exemplo, esse beat, eu produzi basicamente o beat é: bateria e baixo, tá ligado? E eu me virando em cima, domando esse beat, né? No maior estilo Hakim, no maior estilo Krs-One. Então essas três tracks, assim, são as que eu mais gosto, mas eu também gosto muito de Lágrimas de like e de Sou o dragão Tiamath, sobretudo pelo sample, que foram samples que eu tirei de desenho animado, tá ligado? Foi uma pesquisa, assim, bem interessante que eu fiz na época.


3. Sávio: O que as cinco cabeças representam?


Aganju: As cabeças de Tiamath, mano, em princípio, representam cada cabeça um poder, né? Vamos dizer assim retomando a origem de Tiamath enquanto um desenho animado. Mas, do ponto de vista do que é Tiamath dentro de um contexto do Universo 75, isso vai ser mais destrinchado na sinopse e no conto que eu tô elaborando, cada cabeça representa uma certa personalidade de Tiamath, tá ligado? Porque o que você vai perceber é que Tiamath, no que a gente tem construído no Universo 75, ele é um personagem que ele mistura tudo: ao mesmo tempo em que ele é uma divindade nominável, ele já foi um desenho animado e agora, atualmente, Tiamath, o que ele é agora? Ele é um jovem homem preto em 2096, como qualquer jovem homem preto, com a diferença que depois do pescoço dele pra cima, ele tem cinco cabeças que mais parecem cabeças de dragão de Komodo, cada uma de uma cor, representando, vamos dizer assim, uma habilidade. E as habilidades são vastas de Tiamath, né? Ele cospe fogo, ele cospe relâmpago, ele cospe gás, ele tem o poder de se teletransportar tanto do ponto de vista físico, quanto do ponto de vista multidimensional, de ir pra outras dimensões. Então essas cabeças, na verdade, são as várias facetas, né, da personalidade de Tiamath, que representa essas várias facetas das multipersonalidades e vivências dos homens pretos, sobretudo num contexto de violência letal, em um contexto de genocídio.


4. Sávio: Se pudesse definir a obra em cinco palavras, quais você usaria?


Aganju: Pow, mano, isso é sempre muito difícil, mas vou tentar pensar aqui enquanto vou falando. Fúria, Caos, Rima, Distopia, Disruptivo... caramba, mais uma: Intenso.


5. Sávio: Têm participações na obra? E Como se deu o processo criativo?


Aganju: Não teve nenhuma participação, é uma obra pra apresentar o personagem mesmo, então não teve nenhuma participação. E sobre o processo criativo, irmão, como eu te falei, veio primeiro desse castelo sobre o personagem Tiamath em Caverna do Dragão, que eu sempre gostei. Posteriormente, eu pesquisei mais sobre o que era Tiamath do ponto de vista histórico, aí eu descobri essas suas raízes divinas e além dessas pesquisas tem a minha própria vivência. Como eu te falei, Tiamath, em si, ele representa, vamos dizer assim, personalidades ou experiências de masculinidades pretas distópicas, né, dentro de um contexto de violênca, de genocídio. Então, o processo criativo, na verdade as letras, são pedaços de várias experiências, tanto minhas quanto experiências que eu vi, que eu ouvi, que me disseram. E todas experiências narradas e construídas dentro de sociabilidades de homens pretos, tá ligado? É uma narrativa de homens pretos e até mesmo para homens pretos. Eu fiz essa obra muito direcionada para homens pretos, tá ligado? Em vários sentidos, e mais do que isso, do ponto de vista dos beats, né? Os beats, todos os beats têm samples, alguns samples, pedaços de instrumentais do próprio desenho Caverna do Dragão. Eu também sampleei muito alguns sons ao vivo, tá ligado? Tem um beat mesmo que eu sampleei praticamente várias coisas ao vivo, têm até sons de pessoas falando. E além disso, do ponto de vista da sonoridade, eu tentei fazer o inverso. Comecei, por exemplo… o EP começa com o Raghatoni, que é a track Cuspindo fogo na cidade, depois vem a track Rappers aplaudem qualquer merda, que é um ragha, posteriormente vem a track que Meus manos não sao niggas, que é um boombap original, é o único beat que não é meu, esse beat é um free beat, tá ligado? Eu pesquisei em um canal paquistanês de rap, aí é um free beat batendo. Posteriormente vem um interlúdio, né? Que é uma track, é tipo um react de Neuro Cage sobre o que ele achou da obra né? Nesses anos que eu fui construindo, eu fui mandando pra vários parceiros e Neuro sempre mandava umas análises assim: interessantes. Então eu resolvi colocar aquela análise dele ali no interlúdio. Aquele beat especificamente do Interlúdio, quem fez foi Billy Sujo. E as outras duas tracks, tanto Sou o dragão Tiamath, que é um afrobeat misturado com jazz, né, com a bateria de jazz clássica, e o último beat, que é o beat da música Lágrimas de like, que é um beat, vamos dizer assim, de um boombap mais sombrio, quase que um rap de mensagem, mas um rap de mensagem bem distópico. Coisa que se você for pensar bem sobre o que significa essa noção de lágrimas de like… então o processo criativo se deu nesse sentido, e são gravações que eu fiz ao longo de 2019 a 2020, tá ligado? Então eu gravei esse trampo várias vezes, várias vezes, pelo menos umas cinco vezes, eu gravei até chegar nessa versão que vocês tão escutando aí.


6. Sávio: Qual a contribuição de cada pessoa na obra em geral? Incluindo você.


Aganju: Ressalto aqui a contribuição de Billy Sujo através do Sujeira Rec, foi quem mixou e masterizou tanto as vozes quanto os beats também, em sua versão final. Também ressalto a participação estratégica de João Artes, foi quem fez a arte, né, através da minha direção criativa. E ressalto também a minha participação, que eu que gravei a porra toda, produzi os beats, fiz a concepção de criação, e como sempre o Universo 75 é isso né? Acaba reunindo vários studios homes comunitários espalhados pelo Recôncavo da Bahia. Então eu acho que é isso, e no mais, escutem Tiamath, primeira obra do Universo 75 de 2023, e vem mais por aí. E, um mês depois do lançamento do EP Tiamath, vamos estar lançando aí o conto “Sou o dragão Tiamath” sobre uma das tracks do trabalho.





bottom of page