Alto do Cucuí de Caboclo
Cachoeira - BA / Agosto de 2096
…
Quando Tiamath abriu os olhos pela primeira vez percebeu que era divino. Durante muito tempo não teve uma forma física, muito menos espiritual, apenas existia no continuum espaço entre as zonas limítrofes do que viria ser o tempo. Milênios se passaram e por algum motivo até hoje desconhecido tornou-se o que os humanos chamam de divindade. Depois enclausuraram sua “existência” em cerca de mil e trezentas linhas escritas sobre sete tábuas de argila , cada uma com 200 linhas de texto: foi ai que surgiu o Enûma Eliš , o mito de criação do antigo povo babilônico. Nesse épico um tanto simplório Tiamath da a luz a primeira geração de outras divindades. Tem sete filhos que seu próprio marido mata um por um por medo de usurparem seu trono. Tiamath então torna-se um dragão marinho que arrasa a existência em uma guerra enfurecida contra os assassinos de seus filhos. Depois de sua vingança completa, Tiamath é assassinada por um de seus filhos sobreviventes: Enki o Deus da Tempestade. Mas antes de morrer cospe seus próprios pedaços e os enche de partículas divinas. Cada pedaço torna-se um dragão de cinco cabeças com um apetite incontrolável por destruição.
Milênios antes da era cristã Tiamath foi a deusa primordial do mar salgado acasalando-se com com Abzû, o deus da água doce . Era o símbolo do caos e da criação primordial. Foi também a deusa criadora ao mesmo tempo que personificou monstruosidades. Já foi uma serpente marinha . E tempos depois Tiamath tornou-se um dragão de cinco cabeças. Milênios passaram, impérios ruíram, Deuses sucumbiram e outros tantos tornaram-se supremos. Tiamath simplesmente serpenteou pela consciência caótica da humanidade copulando em seus segredos íntimos e fúrias contidas.
Tiamath percorreu o planeta Terra de diversas maneiras e assumindo diversas formas. Tornou-se os medos de Nun, foi os pés cansados de Ísis em sua constante busca e, por muito tempo foi os desafios letais das aventuras de Hórus e Seth. O escudo que resiste aos golpes da ponta de uma lança etíope, assim como as moscas na ferida putrefata. Durante séculos Tiamath assumiu a forma de vários felinos de grande porte, caçando, matando, sorvendo o sangue de suas presas. Até que se cansou de caçar em terra e submergiu nos oceanos assumindo a forma de um tubarão.
Foi mergulhando em profundidades abissais que Tiamath conheceu os Rokea: um antigo povo da costa sul africana que possuía a habilidade de licantropia: o povo tubarão. Rokea são descendentes diretos primeiros tubarões: os primeiros predadores nascidos no planeta Terra. Os Rokea são praticamente imortais, já que não podem morrer naturalmente. Uma vez que atingem a idade adulta, seu processo de envelhecimento é interrompido . E a única maneira de um Rokea morrer é através das garras de outro Rokea.
Os Rokéa nascem como seres humanos oriundos dos grupos étnicos Zulus, Xhosas, , Tswanas, Tsongas, Ndebeles e Suázis, que falam variações das línguas Bantu. Com o avançar dos anos , entre a adolescência e vida adulta, os jovens Rokéa são iniciados nos segredos abissais por seus mais velhos e passam a adquirir a habilidade de transforma-se em uma forma de tubarão bípede de mais de três metros, combinando o poder mortífero de um tubarão com a versatilidade/criatividade de uma forma humana. Entre os Rokéa Tiamath chamava-se Mandla, que na língua Zulu significa poder. Durante séculos percorreu a costa sul africana, quando não estava submerso na forma de um tubarão, se misturava aos humanos nas colônias de pescadores na costa Sul Africana.
Depois de séculos como um pescador Zulu chamado Mandla, Tiamath foi assassinado por outro Rokéa ; desmembrado e devorado. Tudo foi muito estranho, pois depois de milênios foi a primeira vez – mas não a última – que encontrou a morte, que na época ainda não era uma senhora com uma foice, mas sim, um jovem e viril guerreiro berbere que se apresentou a Tiamath com o nome de Iku. Caminharam juntos por séculos, e a cada século Iku assumia um novo nome ou mesmo nova aparência.
Foram tempos de aprendizado. Tiamath conheceu mais sobre si mesmo, suas origens cósmicas e sobre a existência de seres tão antigos quanto a própria noção de espaço, tempo ou existência. Também assumiu varias formas e nomes. Mas Iku sempre o chamava de Tiamath e dizia que independente da forma que assumisse: de um gato, cavalo, furacão, terremoto ou mesmo como um rapper , o dragão de cinco cabeças em algum momento emergiria das profundezas para cuspir fogo.
Na década de 80 do século XX Tiamath torna-se um personagem anti-herói de um desenho animado chamado Caverna do Dragão . Nesse desenho animado Tiamath, a antiga Deusa Dragão da Mesopotâmia , foi reduzida a um imenso dragão de 5 cabeças que expelia distintas rajadas de fogo, ácido, raios, gás venenoso e frio ártico. Além desses “fantásticos “ atributos Tiamath pode ainda teletransportar-se para múltiplas dimensões.
No episódio 20 os jovens protagonistas de Caverna do Dragão estão prestes a cruzarem um portal dimensional que os levariam de volta para suas casas, quando o vilão máximo da serie animada – o Vingador - destrói o portal . A frustração é tamanha para os jovens pupilos do autoproclamado Mestre dos Magos, que eles decidem enfrentar o Vingador e derrotá-lo de uma vez por todas, buscando ajuda do ser mais temido de toda trama: Tiamath o dragão de cinco cabeças .
Tiamath Revela aos jovens que suas armas mágicas são mais poderosas quando usadas no Cemitério dos Dragões. Essa é a última cena que o dragão aparece na trama. Tudo foi um grande ardil, para que pudesse utilizar poderes de teletransporte multidimensional para dirigir para fora das limitações de uma TV, transportando para o próprio planeta Terra como Tiamath - o dragão do caos - . Algo que deu extremamente errado já que desde então esta aprisionado no Universo 75.
Agora ano de 2096 Tiamath é um jovem homem negro com dois metros de altura, força física descomunal e pele praticamente intransponível. Possui cinco cabeças de dragão que crescem ao longo do pescoço. Cada cabeça com uma cor, cada cor representando uma habilidade. A cabeça branca lança raios congelantes, a cabeça verde lança uma nuvem de gás venenoso, há também uma cabeça azul que lança energia em forma de raios e uma cabeça preta que lança ácido, por fim, existe a cabeça de dragão vermelha, que é a única que fala e lança labaredas de fogo.
…
Acima das densas nuvens nubladas que cobrem as cidades do Hellcôncavo, fora dos limites da visão humana, mais especificamente a 12 mil metros de altitude erguem-se a quilômetros de distância cidadelas flutuantes altamente tecnológicas. São ultralopoles suspensas por poderosos geradores movidos a base de energia nano-nuclear, seus moradores são a elite branca dirigente e, seus imediat@s linhas auxiliares.
As cidadelas flutuantes são o que há de mais avançado nas concepções de cidades do futuro, onde natureza, urbanidade e produção agroecológica andam perfeitamente em confluência com o fluxo urbano. Todo esse cenário de uma urbanidade utópica é interconectado através de um cotidiano atravessado por ultra tecnologias, como a robótica, inteligência artificial, nanotecnologia, ou mesmo a produção de circuitos e dispositivos eletrônicos para melhoramentos genéticos no próprio corpo humano. No entanto, essas cidadelas flutuantes: o Éden dos brancos - verdadeiras utopias tecnológicas - se mantêm suspensas no ar há quilômetros de distância através de seus poderosos geradores de energia gravitacional que despejam uma espessa fumaça acinzentada na zona de convergência intertropical onde a maioria das nuvens se formam.
Quilômetros abaixo das Cidadelas flutuantes formaram-se um verdadeiro “aglomerado” onde a população negra amonta-se em bolsões de pobreza, morte e violência estrutural. As Zonas da Morte são os territórios onde ficavam as antigas cidades de Cachoeira, São Felix, Maragogipe , Cruz das Almas , Santo Antônio de Jesus , São Felipe e Amargosa ou pelo menos o que restou delas.
Nas Zonas da Morte pessoas negras são de sobremaneira sujeitadas a mortes violentas, condições de pobreza crônica, encarceramento em massa, desemprego desproporcional, mortes prematuras, doenças facilmente previsíveis e um conjunto vasto desigualdades no acesso à educação, saúde, lazer e condições básicas de sobrevivência.
É nesse território distópico que Timath O dragão de Cinco cabeças e seu parceiro Kalado, estão fumando um baseado encima de uma laje em construção na periferia da cidade “heróica”, mais especificamente no Alto do Cucuí de Caboclo. Do alto da laje conseguem ver a cidade quase por completa. Até onde a vista alcança morros cobertos por um aglomerado caótico de prédios que variam de dois a cinco andares, a maioria ainda em alvenaria de tijolos vermelhos, com telhados equipados com placas de energia solar.
Mais ao longe no centro da cidade podem ver os escombros do conjunto arquitetônico barroco colonial, com casarões, sobrados, igrejas e irmandades religiosas. No entanto, se a tempos atrás essa parte da cidade era roteiro turístico, ou mesmo a morada da elite branca colonial Cachoeirana, hoje o centro da cidade é um território habitado pela escoria social, um território sem lei, onde a maioria dos casarões foram ocupados por bandos de insurgentes que não respeitam as leis dos brancos, muito menos dos pretos.
O curso serpenteado do rio Paraguassu que dividia as cidades de Cachoeira e São Felix está quase totalmente seco, pois a Barragem da Pedra do Cavalo foi completamente privatizada, de modo que se antes sua principal função era o abastecimento de água do Recôncavo Baiano, assim como da região metropolitana de Salvador, agora todo o potencial hídrico é empregado para o abastecimento do agronegócio e para o consumo da elite branca das cidadelas flutuantes. A pouca água que brota de frestas das comportas da antiga usina da Pedra do Cavalo desce em filetes em direção ao Rio Paraguassu que foi totalmente ocupado por favelas formadas de palafitas, que erguem-se sobre o lamaçal de esgoto e mangue que se tornou as águas do rio.
Tiamath observa tudo do alto da laje. A ganja expande seus sentidos, e a medida que dá outro trago no baseado balbucia algumas frases soltas:
- Quando no alto não se nomeava o céu,
e em baixo a terra não tinha nome,
quando nenhum dos deuses
tinha sido chamado a existência ...
Tiamath emergiu cuspindo fogo
Antes que possa terminar seus versos e tragar mais um pouco do baseado Tiamath é interrompido:
- Você fala pra disgraça. Quis ideia da porra. Passa o baseado ai no máximo respeitinho cêru.
Esse que fala rispidamente enquanto pega o baseado abruptamente é o parceiro Kalado, ele tem a pele preta como asfalto, dentes brancos como a neve, cabelo cortado na régua. Veste bermuda de surf da Seaway, uma camiseta regata modelo americano e um tênis tão branco quanto seus dentes. Todo esse “arsenal” visual combina com o tom prateado de seus braços feitos de implantes biônicos de polímeros de titânio.
Esses braços biônicos são virtualmente indestrutíveis, possuindo circuitos de nanotecnologia que se auto regeneram caso danificados. O mecanismo é conectado diretamente há um exoesqueleto integrado a sua coluna vertebral, bem como , ao sistema nervoso central, possibilitando ao usuário sentidos hiper aguçados, correr mais rápido que qualquer ser humano, saltar enorme distâncias, escalar praticamente qualquer terreno, além do aumento descomunal da força física possibilitando carregar ou destruir objetos pesados com facilidade.
Kalado dá mais três tragos no baseado e, antes que possa continuar a “carburar”, a cabeça de dragão de cor preta intercepta o baseado que esta quase na última ponta. Com agilidade Kalado solta o baseado antes que tenha sua mão metálica abocanhada. Depois que a cabeça de dragão de cor preta traga o baseado, a cabeça de cor vermelha começa a falar, ao mesmo tempo em que com uma das mãos Tiamath guarda em sua Shoulder Bag da marca Universo 75 um pequeno bloco de notas:
- Como já te disse cêru esse bloco de notas é o esboço de um livro de memórias. Escrevo pra não enlouquecer. Você é um ignorante! não entende que muitas vezes as memórias se misturam e fico em duvidas sobre quem ou o que sou? . Você sabe que sou...
- Já sei porra!, “Tiamath o Dragão de cinco cabeças” – Kalado fala com um tom irônico enquanto faz sinal de aspas com as mãos:
- Da pra ver literalmente em sua cara. Ou melhor, nas suas caras, que por sinal uma delas quase arranca uma de minhas mãos por causa de uma ponta de baseado.
-Foda-se! Vamo sair fora!!
Antes mesmo de terminar de falar, Kalado salta com facilidade sobre-humana do alto da laje de quatro andares rumo ao solo. Depois que “pousa” , olha pra cima do parapeito onde Tiamath permanece sentado de cócoras; como um gárgula:
-Bora mô fio! vamo sair fora que já anoiteceu e o Studio uma hora dessas deve ta lotado.
…
As ruas de paralelepípedo do Cucui de Caboclo estão cheias de pessoas pretas vestidas de branco carregando balaios transbordando de pipoca. É mês de agosto e os poucos terreiros de candomblé que restaram em 2096 estão realizando obrigações para o Senhor da Terra: Obaluaê.
Uma pequena multidão vestida de branco está concentrada no entorno de um enorme terreiro de candomblé construído a séculos no cume do Cucui de Caboclo. Do lado de dentro pessoas entoam cânticos ancestrais, tocam atabaques, Gans e dançam incorporadas por divindades de origem africana. São aproximadamente oito horas da noite de um sábado, as ruas estão molhadas pela chuva que caiu nas últimas horas , o céu esta nublado e um mormaço claustrofóbico toma conta da atmosfera.
Depois que passam pela pequena multidão em frente ao terreiro seguem sua caminhada rumo ao seu destino. A medida que descem as ladeiras do Cucui de Caboclo os sons dos atabaques e cânticos ficam mais distantes e as ruas de paralelepípedo precariamente iluminadas com postes de luz amarelada estão quase completamente vazias.
As cinco cabeças de dragão estão sempre atentas, movimentando-se como serpentes, olhando para todos os lados, as vezes sibilando levemente. Tiamath e Kalado caminharam por cerca de vinte minutos por becos, vielas, ladeiras intermináveis e ruas escuras chegam em uma pequena vila com cerca de trinta casas visivelmente abandonadas. Todas as casas – exceto uma - estão sem portas, janelas ou mesmo telhado. Ao centro dessa vila forma-se uma espécie de pracinha com as ruínas do que já foi um parque infantil e uma quadra de futebol totalmente esburacada.
A única construção que não parece estar abandonada é um prédio de cinco andares ainda na alvenaria com um enorme portão de aço daqueles que se arrasta pro lado. Todas as janelas do segundo ao quarto andar estão emparedadas , somente o quinto andar possui janelas de vidro fumê do tamanho de portas. No teto em formato de laje há duas placas de energia solar com cerca de 50 metros, além de um par de torres de vigilância armadas com metralhadoras automatizadas calibre .50 , com mira lazer e munição capaz de atravessar carros blindados, derrubar drones armados e transpassar o corpo humano como se fosse feitos de papel.
Quando Tiamath e Kalado aproximam-se do portão percebem um painel led do tamanho de um tablet com um leitor de retina. Kalado encosta seu olho esquerdo – que por sinal também é um artefato biônico, tal qual seus braços - segundos depois as armas automatizadas destravam as miras lazer, ao mesmo tempo em que o portão de aço fundido de aproximadamente cinco metros começa a abrir remotamente.
Entram no prédio.
…
O andar térreo é um de deposito de materiais de construção. Centenas de sacos de cimento , latas de tinta e barrotes de madeira estão empilhados desordenadamente pelos 200 metros quadrados do deposito. Na parte de traz, próximo a uma pilha de barrotes de madeira há duas portas, uma que leva a escadaria que da acesso aos outros andares do prédio. A outra porta é do elevador de carga. O elevador possui apenas uma alavanca bem rudimentar: pra direita desce, pra esquerda sobe.
- Fui dar um mijão! – anuncia Kalado enquanto sai de uma pilha de cimentos balançando o pau preto com as mãos metálicas -
Depois que Kalado entra no elevador Tiamath aciona a alavanca. Enquanto estão subindo rumo ao quinto andar já podem escutar o som dos timbres dos beats.
...
Depois de quase um minuto subindo rumo ao quinto andar as portas do elevador abrem-se, Tiamath e Kalado chegam ao lendário Studio Clandestino Vortex. A proposta do Studio/Selo Vortex é formar novas gerações de produtores-as de música digital centrada em rap, sobretudo, jovens pretos que tem atuado como articuladores culturais nas Zonas da Morte. Através de um de seus programas clandestinos comunitários, o Laboratório musical , o Vortex Studio tem ramificado e consolidado um espaço de formação e criação que tem batido de frente com as políticas supremacistas normatizadoras do Shogun Hype.
O Studio clandestino Vortex tem uma peculiaridade, pois é um equipamento móvel multidimensional que nunca esta no mesmo local por mais de três meses. Todo equipamento é uma espaçonave interplanetária multidimensional com capacidades metamórficas e de manipulação do espaço-tempo, podendo assumir diferentes formas, seja um prédio de cinco andares ou uma casa pequena de telhado de Eternit. No entanto, onde quer que o Studio Vortex é instalado, sempre possui a mesma estrutura tecnológica e proporções internas.
O espaço interno do studio Vortex é totalmente diferente do prédio foi visto do lado de fora. Fora as torres de vigilância equipadas com P.50, assim como as placas solares, nada no prédio semi abandonado daria indícios do nível de tecnologia, sofisticação e bom gosto que Tiamath e Kalado se deparam quando saíram do elevador de carga para dentro do Studio.
A sensação é que literalmente foram teletransportados para um outro ambiente geograficamente e molecularmente falando. Se no térreo do prédio havia uma depósito de material de construção , agora o ambiente é um Flat de 500 m², com três paredes de tijolos vermelhos novaiorquinos expostos, revestimento no teto de madeira de lei original, além de uma luz natural que vem de um paredão de oito janelas de 20 x20 que tomam toda ala esquerda do Studio. Surpreendentemente as janelas mostram uma vista de outro ângulo da cidade de Cachoeira, mais especificamente é como se Tiamath e Kalado estivessem a pelo menos cinco mil metros de altura observando a cidade de uma aeronave. Do alto podem ver os desenhos da iluminação da cidade, além de uma região serpenteada, um pouco menos iluminada, que são as favelas de palafitas que se estendem pelo antigo curso rio Paraguassú.
Na parte central do Studio estão disposta três enormes mesas retangulares de madeira nobre formando uma espécie de triângulo . Encima das mesas existe uma infinidade de equipamentos de produção de musica digital todos amplamente interconectados, são sintetizadores, teclados Midis, baterias eletrônicas, Machines, MPCs, programadores de baterias, teclados das mais variados tamanhos, placas de áudio, notebooks e quatro monitores de áudio de 30 polegadas HS Classe Alfa.
Envolta das mesas estão posicionados beatmakers, cada um/a produzindo beats com fones de ouvido de alta resolução, utilizando computadores ou samplers . Muitos desses beatmakers possuem implantes cibernéticos nos braços, olhos, peitoral , assim como, estão conectados a seus computadores/samplers através de cabos que saem diretamente de implantes cibernéticos. Enquanto uma parte trabalha silenciosamente produzindo beats com fones ouvido, um beatmaker sempre esta apresentando uma batida recém produzida acoplando seu equipamento no par de gigantescos monitores de áudio de 30 polegadas HS Classe Alfa.
Além dos beatmakers há também cerca de 150 pessoas espalhadas pelos sofás de couro, no bar da cozinha americana e aglomerados em circulo em torno do setup de produção . Há também rodas de freestyle que se formam em variados pontos da extensão do Studio, sobretudo, mais próximo de onde esta posicionadas os tripés que sustentam os monitores de áudio. Essas rodas de freestyle são formadas pelos mais variados “ seres” do Universo 75. Todos/as jovens negros/as , ainda que alguns não sejam mais tão humanos. São Ciborgues pretos/as , mutantes , exilados interplanetários, Trolls e até mesmo viajantes alienígenas. Com o avançar da noite permanece apenas uma roda de freestyle que esta cercada por uma audiência em frenesi que grita em furor: "Mata ele! Mata ele! Mata ele! Mata ele!" Os beatmakers seguem disparando uma batida , após a outra, enquanto a audiência em permanente êxtase , forma um círculo em torno dos Mc's, que rimam ininterruptamente, mesmo quando eventualmente o beat para de tocar.
Dos Mcs que continuam a rimar freneticamente um se destaca: Big Troll, que é um dos integrantes da MOOB DA DISGRAÇA. A MOOB é um coletivo de insurgentes super humanos que tem se destacado como a última linha de autodefesa contra a mediocridade musical do império fonográfico Shogun Hype. Cada integrante da MOOB possui características sobre humanas bem distintas, alguns nem mesmo são do planeta terra. O Abominável Big Troll, por exemplo, é um dos sobreviventes da explosão de uma usina de processamento de lixo tóxico, que literalmente varreu do mapa todo um bairro de SAJ SYSTEM, matando milhares e , modificando a composição genética de centenas. Big Troll é um desses “modificad@s” , possuindo cerca de três metros de altura, força sobre-humana, pele esverdeada, garras , dentes afiados e uma extrema resistência ao álcool. No entanto, outro efeito da exposição ao lixo radioativo foi a manifestação de um grave transtorno dissociativo de identidade (dupla personalidade) , que é materializado através do alter-ego Mestre Bêbado.
O Big Troll é um fragmento da versatilidade criativa e pericia rimática d@s Mcs que compõem a MOOB DA DISGRAÇA . Big Troll é literalmente “ Abominável”, uma “ besta fera” , um “monstro” na arte do ritmo e poesia, hibridando métricas aparentemente contrarias dentro de uma variedade quase caótica de Speed Flows que o dispara com a mesma naturalidade com que muda de personalidade em uma mesma música, ou mesmo verso, uma espécie “dueto” entre Big Troll e a manifestação vocal de seu transtorno dissociativo de personalidade: o Mestre Bêbado. Tiamath apenas observava a carnificina rimática sentado em um dos grandes sofás de couro do Studio Vórtex. Em suas mãos ele aperta um baseado e logo depois a cabeça de dragão Azul passa a língua pra dar a cola. Quando baseado está apertado a cabeça de dragão vermelha dispara um filete de fogo pelo nariz como se fosse um maçarico. Com o baseado acesso, cada uma das cinco cabeças dão três tragos e soltam a fumaça por suas narinas.
Depois de curtir a brisa alguns minutos Tiamath Levanta do sofá, passa pela multidão que se aglomera em circulo em volta dos Mcs e se dirige até as três mesas retangulares onde estão dispostas sintetizadores, teclados Midis, baterias eletrônicas, Machines, MPCs, programadores de baterias, teclados das mais variados tamanhos, placas de áudio, notebooks e um clássico microfone Shure SM57 conectado aos monitores de áudio. Tiamath empunha com firmeza o microfone Shure SM57 posicionando-o com sua mão direita a poucos centímetros da cabeça do dragão vermelho :
- atenção ! atenção! Rappers aplaudem qualquer merda!
A audiência do Studio Vortex forma um círculo fechado entorno de Tiamath quando escutam sua voz no microfone Shure SM57 dizendo: "rappers aplaudem qualquer merda". Ao mesmo tempo a beatmaker Jocasta, uma rasta lutadora de Muay Thai com implantes robóticos no braço esquerdo dispara um beat, antes mesmo de Tiamath possa sequer começar a rimar, a audiência vai a loucura. Em meio aos gritos, assovios e palmas, se destaca os brados euforicos de Kalado:
- Representa disgraça !!
Tiamath não escuta seu parceiro Kalado pois esta em transe enquanto eleva a arte rimática há um patamar superior, combinando flows inimitáveis, métricas e letras disruptivas. Tiamath é um verdadeiro pensador inquieto e artista divergente/insurgente rimando com grande originalidade e combatividade. O fogo lírico do dragão de cinco cabeças espalha novas direções criativas, mesclando sonoridades com conceitos amplos e originais, que vão da cultura pop à ancestralidade de matriz africana e perspectivas estéticas Afrofuturistas que se recriam em uma perspectiva polifônica em fluxos e contra fluxos de flows distópicos, que combinados aos beats trazem uma atmosfera polifônica de ritmos.
Tiamath segue cuspindo fogo em 2096. Já são cinco beats disparados pela Dj Jocasta e a essa altura o studio clandestino Vortex já virou um baile, não existe mais separação entre público, beatmakers e Tiamath, é sound system. Tiamath empunha o microfone Shure SM57 como se fosse uma espada . Todas as atenções do Studio Vortex estão voltadas para o dragão de cinco cabeças que não se intimida ou muito menos se distrai com a euforia do público. Tiamath apenas dropa no beat e alça voos rasantes enquanto cospe rajadas de fogo lírico incendiando o público, que em êxtase repete o refrão em uníssono:
Meu manos não são niggas!!
Meu manos não são niggas!!
Meu manos não são niggas!!
Meu manos não são niggas!!
Meus manos não!!!!