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  • Samuel

Lombra e Loucura




É madrugada e nem a lua conseguiu cessar o calor de 30 e poucos graus que faz aqui na caatinga. Parece que o Sol não descansa nem de noite, parece que não está nem um pouco afim de deixar a lua brilhar por algumas horas esfriando o ar e os corpos, que suam como cuscuz... todo mundo fala isso. E é verdade mesmo.


Calor da disgraça, vários castelos na mente, e ainda tô de cara. Parece que hoje tudo se voltou contra mim, até o sono. O colchão que já estava desconfortável, ficou pior todo encharcado de suor, e mesmo com medo dos gambé - ainda mais a essa hora - resolvi bater um banho e ir bater perna na rua para tentar esfriar a cabeça, talvez pegar um ar...


Peguei meu boné e meu capote e me saí, porque apesar de estar com calor, pra mim é estranho sair sem ele de noite, sem o capote sinto como se eu estivesse desprotegido, sem uma capa que me deixa passar mais despercebido entre o povo, quase que me tornando invisível perante a tantos olhares curiosos, alertas e incansáveis... São 01:48 da manhã, um breu da peste, tá tudo deserto, um silêncio ensurdecedor, aliás, nem tão silêncio assim. Uns minutos atrás, tomei um susto da porra com o barulho de gatos miando e telhas caindo por algumas dessas ruas-labirintos que me cercam. Pelo menos hoje os gatos deram sorte, tão transando selvagemente. Enquanto eu, um gato preto solitário, perambulo por essas ruas-labirintos de pedras, asfalto e silêncio, e me pergunto se sou o único acordado, inquieto, e caminhando por essas ruas a essa hora... Certeza que não era. A noite pertence a muitos, igual uma puta: atraente, muita emoção, tudo à flor da pele, carece é de muita coragem e loucura para isso.

A cada passo dado, os castelos insistem em grudar na minha mente, feito cheiro forte de maconha que gruda nas pontas dos dedos. Não sai nem com a porra! Hoje, meu maior aperto de mente é tentar continuar vivo nessa cidade, sobrevivendo numa linha tênue entre ter medo de morrer na mão dos gambé, do povo, morrer de fome ou enlouquecer... o que é mais provável. Parece que não tem saída, que é só desespero enquanto caminha em passos lentos em direção ao abismo.

Durante o dia rodei a cidade inteira (pequena, um ovo), de novo, pela, sei lá, não sei quantas vezes já, atrás de um bico para poder garantir uma moeda a mais. O dinheiro parece um bicho com fome: quanto mais come, mais fome sente. E a comida vai acabando rapidin que ele nem percebe, e quando vê, a fome nem passou ainda, e já comeu tanto.


Rodei, rodei, rodei e não achei nada! Os anos vão passando e tenho a impressão de que a cidade continua empacada, não desenvolve, apesar do que chamam de desenvolvimento, que na verdade é mais um desmatamento-loteamentos. Os trampos que me restam é herdar a herança de minha família de continuar batendo massa, pintando a casa, se fudendo o dia inteiro, pra no final ganhar uma mixaria que nem dá pra pagar todas as contas no final do mês, quem dirá comprar uns pano massa e eu poder me olhar no espelho e tirar uma pala.


É por essas e outras que nunca julguei e nem vou julgar os parceiros que se envolve, os que escolhem o verde, o branco, a prata ao invés do cabo da inchada. Uns preferem simplesmente continuarem vivos e mantendo suas famílias vivas também, seja por qualquer meio necessário. Vivemos na babilônia, aqui é todo dia luta pela sobrevivência. E se estou na guerra, prefiro então seguir os meios que possam me manter vivo do que escolher os que me levam em direção mais rápida ainda para a morte. Não tenho o direito de apontar o dedo (e mesmo que tivesse o manteria abaixado) para os parceiros que escolheram, somente sobreviver. É impossível conseguir imaginar o que alguns parceiros passam, quais castelos insistem em se erguerem em suas mentes. Ter que escutar o filho dizer que tá com fome e não ter o que dar pra comer, não ter a moeda para comprar o leite, as fraudas, a roupa, a vida... Porra... Viver hoje é quase sinônimo de “ter dinheiro” mesmo... Barril vuh...

Nem percebi, mas acho que já andei demais, suei demais, então resolvi subir em um pico massa da cidade que eu costumo ir pra torrar um, apesar de que hoje eu tô subindo de cara, porque o país tá tão fudido, a guerra tá tão intensa, que até o chá tá difícil de achar, e quando acho é uma porra miada, e cara ainda, pra completar. Os pivetes tão até com medo de botar o chá na pista e os gambé, em troca, acabar botando uma bala na cabeça deles.

As vezes sinto como se vivesse no fim do mundo, tipo desses de filme, só que sem zumbi, temos hora para voltar pra casa, 20h é a hora do toque de recolher. Passou disso o bagulho lombra, fica mais barril do que já é. Ranger para cima e para baixo, carros de vidro fumê e sem placas rodam pelas ruas-labirintos, drones sobrevoam o céu, covas clandestinas por toda parte, pessoas desaparecendo, homens fardados desfilam com seus armamentos enquanto nos seus olhos, é possível perceber sua sede de morte. O medo toma conta da alma de geral que nasceu melaninado. Uma loucura! Será que não seriam então estes, pretos de almas-brancas-fardados-zumbis!?...

A visão aqui de cima tá dahora, consigo flagrar a cidade toda (e pra quem vive aqui, nem precisa reparar muito, já consegue enxergar toda a tristeza que há camuflada na beleza). Um bando de luzes amarelas, brancas, vermelhas e azuis iluminam os labirintos e ao redor, só o breu, só o mato, só a zuada do canto dos caburés. Aqui de cima, por algum motivo, acho que talvez seja pelas lembranças daqueles filmes românticos clichês em que um casal vai ao pico da cidade naqueles carros que não tem teto e conseguem ver o céu todinho, a carência tá batendo mais forte do que o normal, e eu fico castelando mil fitas...


Bateu mó vontade de viver uma parada assim (mas longe de todo esse romantismo de novela): eu e um cero, dois homens pretos torrando um no breu da noite, e trocando afetos sentados no capuz do carro, enquanto no som, bem baixinho, bem baixinho mesmo, toca aquela lá da Alcione- Meu Ébano. Mas para mim, isso é bastante utópico. Um homem preto gay no interior baiano trocando afeto com outro homem preto? Lombra. Não é impossível, mas talvez só seja possível em um futuro bem distante. Não sei se vou vivo até lá.

Eu já convivo o dia todo, todos os dias rodeado de gente ruim, tanto que não sei se teria coragem de andar de mãos dadas na rua, chamando atenção. Já não basta ser alvo da PM, de tanta coisa, até de minha mente, e agora também virar alvo da língua do povo? Ainda mais..?

Na escola, quando era criança, eu já sentia as dores de ser eu mesmo sem nem ainda saber ao certo quem eu era. Um dia, como era de costume, uns meninos estavam me perturbando na fila da merenda, me chamando de qualquer palavra que para eles, e para mim também, naquele momento, soavam como xingamento. Mulherzinha, bicha, viadinho e tantas outras palavras invadiam meus ouvidos com agressividade, que eu decidi chamá-los de volta pelos mesmos nomes, e em troca, me jogaram um prato de sopa quente. Chegando em casa, entreguei o papel que a direção havia mandado para os pais, e apanhei, de novo. Desde estes tempos, até hoje, o amor para mim, é lombra e loucura.

...

Minha mente fica vazia, em silêncio por alguns segundos, assim como toda a cidade, (talvez até minutos, acho que já estou perdendo a noção do tempo) e eu, novamente tomo outro susto e o silêncio é interrompido pelo som e vibração de notificação chegando no celular. Pensei em ignorar, e seguir com meus castelos, mas a curiosidade em saber quem ou o que me incomoda a essa hora faz eu desbloquear a tela do aparelho.




Raul é um pivete que cresceu junto comigo indo escondido dos nossos pais para o meio do mato tomar banho de rio, presa e qualquer outro lugar com muita de água. Nessa época, em que nem pelos nas axilas tínhamos ainda, mas em compensação tínhamos a coragem do mundo todo, a gente entrava no mato sem medo de nada. Uma vez, Dudu corajoso que era, brincava e brincava na água, na lama, e no coração da gente. Mas cá dentro, ele parou de brincar desde o dia em que aquela imensidão de água que a gente ficava por horas alí, vendo, mergulhando, sentindo, resolveu inundar com os pulmões dele. De tanto que íamos alí, a lama ficou tão íntima a Dudu, que resolveu então grudar nele, segura-lo pelos pés, e não soltar mais, por nada. De lá pra cá a gente foi ficando medroso, nem lá ia mais... Hoje, já crescidos, nem tão próximos como éramos, e nem com tanta coragem como antes, Raul e eu costumamos torrar uns de vez em quando. Ele é gente boa pra carai, engraçado, e fica mais ainda quando tá chapado. Fica castelando os sentidos das coisas, achando graça em tudo, maiores ondas...


Respondo na maior empolgação, porque Raul brotou do nada, como uma faísca de fogo no breu que vira fogueira.... Talvez seja um sinal de que o restante da madrugada possa vir a amenizar minha situação.

A casa dele é umas 3 esquinas abaixo, daqui a pouco ele encosta.

Depois dos castelos terem sidos “interrompidos" por Raul, percebi que minha bexiga tava cheia pra porra, mas tava castelando tanto que nem havia percebido antes. Vou tirar a água do joelho.

Enquanto eu tô mijando de boa, olhando a lua, bate um vento no meu rosto trazendo o cheiro forte da prensa que Raul já vinha fumando no caminho pra cá. Nos cumprimentamos, fumamos e papo vai, papo vem, fumaça sobe pra mente, a barriga já demonstra logo o buraco que se abriu, e chamo Raul pra gente laricar lá em casa. Meu pai viajando, pra trampar, e minha mãe, depois de ter ficado o dia todo na casa do povo onde ela trabalha, a essa hora, com certeza tá dormindo feito pedra, então tá suave Raul encostar.

-Rapazzz, sei não viu... tá tarde demais já vei, acho que vou pegar caminho. E teus parentes não vão acordar, não!?

Explico a situação, ele fica convencido.

No caminho para casa, trocando ideia, ele me falou que escutou um som de Aganju que indiquei pra ele. Me disse que nunca havia escutado Aganju antes, e que viajou tanto no som “Óleo e Garoa”, que ele resolveu escutar outros. Trocamos várias ideias sobre as letras d’Uspiordaturma, Quinta Esquina, Quadra Sul de como a polícia mata os pivetes preto aqui no interior, e de como isso nos gera medo e revolta. Eu consegui ver nos olhos de Raul que o incômodo que surgiu no meu peito, garganta e olhos também surgira nele. Antes, ainda guris, não tínhamos medo de nada, hoje, temos medo de homens fardados e armados, e de tanta coisa, impossível também não ter... Resolvemos apertar o passo.

Peguei a chave no bolso, abri a porta bem devagarinho pra não fazer barulho e minha mãe acordar. Mandei Raul entrar direto pro meu quarto enquanto eu ia na cozinha pegar uma larica, e um pouco de água que ele pediu, por que a boca já tava seca devido os becks. A minha também. Quando chego no quarto, tá Raul estirado na cama olhando pro teto, gastando a lombra... Achei engraçado e ri só pra mim.


Raul tinha uma pele preta, e com a claridade da luz da lua atravessando o vidro da janela batendo em seu corpo, fez sua pele preta brilhar mais que a prata que estava em seu pescoço.

Eu resolvo tirar o casaco e a camisa porque tá um calor da disgraça, e Raul aproveita e faz o mesmo. Eu reparo que ele tem uma tatuagem de um carcará no peito... A tatuagem combina com quem Raul foi quando ainda era pivetinho, hoje talvez combine, mas eu acho que nem tanto...

Raul me dá o que restou da ganja e manda eu bolar outro beck. Tá bolado e taco fogo. E nessas ondas de gastação de lombra, de bater a lara, de rir, e rir mais ainda por estar rindo, foi quando o cansaço fez a gente ir parando, e como naqueles filmes clichês, quando despropositadamente, o casal um encara o outro, eu e Raul nos encaramos. E num lance de uns segundos que mais pareciam durar uma eternidade, os olhos pretos de Raul, tão pretos quanto sua pele, tão pretos como o breu da noite, me fizeram arrepiar como quem arrepia de frio numa noite quente. Senti, estranhamente, uma ventania dentro de mim.

O silêncio pairou no ar, entre nós, parecendo ter congelado o tempo, as bocas, os estômagos, tudo. Senti que algo precisava ser feito, que algo precisava romper com aquele silêncio ou então ele romperia comigo, e com Raul também. Foi então que enquanto nossos olhares se encontravam, parecendo estarem grudados, nossos rostos iam ficando mais pertos um do outro, e então, de repente, senti os lábios macios e temperados de maconha de Raul tocando os meus. Um misto de surpresa e sensibilidade pairou entre as quatro paredes do quarto, deixando o silêncio se tornar confortável para nós.

Trocamos beijos, fumaça... meu colchão de solteiro, de tão pequeno, se fez gigante, e sem nenhum esforço nenhum coube Raul e eu, que o encharcamos de suor e vontade pelas infinitas horas que ficamos ali, grudados um ao outro, feito a goma que gruda a ceda. Queimando feito o calor que acende o baseado.


Eu entrava em Raul, Raul entrava em mim, e assim, em uma sequência de tirar e pôr, mas sem ninguém tirar nada de ninguém, além de sussurros e gemidos, Raul e eu amanhecemos o dia.

Quando os primeiros raios solares começaram a adentrar o quarto, e os passarinhos comeram a cantar, anunciando mais um acordar do sol, Raul resolveu ir para casa antes que minha mãe e a dele acordassem... Então ele coloca “Não tema amor” de Troll & Aganju para tocar no fone enquanto segue, pelas ruas-labirintos não tão mais silenciosas e vazias como estavam em algumas horas atrás. Ele indo para casa, e eu, de cá, desejando proteção e torcendo para que ele não encontrasse perigo no caminho.

Raul foi para casa, e deixou comigo um pouco de esperança de poder amar que estava por muito tempo perdido em um canto do meu próprio coração, fazendo com que eu acredite que o amor talvez não seja tanta loucura assim, talvez o amor seja mais uma lombra compartilhada. A lombra e Raul fizeram com que os castelos tão pesados sumissem feito fumaça de minha mente, e brotassem, em troca, uma esperançosa, talvez utópica vontade de viver longe desse cotidiano violento, longe de todo esse medo, dessa loucura. Uma vontade de viver na roça, andar de cavalo, rodeado de cachorro, velho, criança, flores, natureza, rios e água limpa pra beber...


Raul foi, e esqueceu de levar consigo o capote com seu cheiro de malbec, me fazendo desejar tê-lo aqui de novo, e podendo usar o capote como desculpa para ele voltar e eu poder olhar novamente bem de perto aqueles olhos pretos profundos que mais pareciam o breu do infinito céu envolto por uma atmosfera quente e acalentadora da caatinga.


Samuel Costa


Ilustração: Samuel Costa

Arte Digital: Adriellen Aragão (@adrelbs)

Ouça a track São Felipe Lombra & Loucura do MC Quadra Sul (@sul4dra @bandit_4dra)



Sobre o autor:


Samuel (@samuuueeeeeel) é um jovem homem preto, escritor e poeta, natural de Nova Itarana-BA, entretanto mora em Feira de Santana-BA, onde estuda Lic. em História. Envolvido com a arte, principalmente da escrita, desde a adolescência, participou de eventos e movimentos literários ainda na escola, onde em 2018 foi premiado em 1° lugar no Projeto TAL (Tempo de Arte Literária) da rede de ensino estadual da Bahia. Samuel acredita na escrita enquanto uma das várias tecnologias de guerra e libertação do povo preto, e é por meio dela, que além de chorar e denunciar no papel as desgraças que o povo preto vive na diáspora, principalmente nas áreas 75, também escreve sobre os sentimentos que atravessam a sua própria vida.




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