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  • Samuel

NÃO TEMA AMOR

Devia ser mais ou menos umas 1h e pouco da madruga. A noção de tempo já não era mais a mesma de antes. Afinal, nada mais era. A casa de Ivan ficava numa esquina. Da janela de seu quarto, nascia a lua. Se tinha uma coisa que Ivan e Binho gostavam de fazer era ver aquela bola de prata, por vezes, de ouro banhada em sangue, que ia aparecendo aos poucos, devagarinho, entre as serras, emoldurada pela madeira envelhecida da janela.

Eles costumavam dizer que a Lua parecia ser quente, tão quente quanto o calor do beck entre os dedos. Ivan e Binho não viam a Lua sem torrar um, achavam que perdia o encanto, que sem o poder da lombra, a Lua, e tudo mais que seus olhos eram capazes de ver, perdiam um pouco da graça, do tesão, talvez, até da beleza. Lombrado conseguia reparar mais em todos os detalhes, de tudo, das cores, sabores, texturas, tudo ficava mais sensível e forte. A lombra deixava tudo mais vivo, inclusive eles. Por isso, não faziam nada sem torrar um. Até fuder quando estavam de cara era menos prazeroso. Parecia faltar o fogo, o impulso. A lombra era meio que a essência do relacionamento. Nisso, eles viviam numa atmosfera de calor: entre fumaça, suor e gozo.

Binho era o tipo de pessoa que conhecia a cidade toda, pique vereador (só que pelo certo), conhecia tudo e todos, de ponta a ponta, tinha a cidade na mão, conhecia de criança à velho, de crente à macumbeiro, de sacizeiro à cachaceiro, de puta à moça… Não sabia dizer como que com tão pouca idade era capaz de conhecer tanta gente assim, mas conhecia. Ainda que só de vista, mas conhecia. E no meio de tanta gente nessa cidade minúscula, Ivan com certeza não passaria despercebido aos seus curiosos olhos. Era só questão de tempo e entrelaçar de caminhos.

No dia em que se conheceram Ivan em casa tava de quebrada, só gastando a lombra do beck que acabou de fumar, deitou no sofá e ficou rolando o dedo na tela do celular, enquanto balançava a perna pra quebrar o tédio. Inquieto, pensou em dar um rolê pelas ruas-labirintos, se pah, dar até um pulo na praça, ver o movimento, se tinha algum bar aberto... Na cidade do fim do mundo rolava altas ondas... A maioria camufladas, nas entocas, é claro.

Saiu com a mesma roupa que tava em casa, não pretendia demorar muito. Passou só um pouco de perfume, se tivesse movimento, iria só ver de longe, dar um salve caso encontrasse algum parceiro, e ia se sair logo. Queria só matar o tédio, ocupar e distrair a mente. Vivia mais de parte, sempre malocado em casa mesmo. A cidade era pequena, mas tinha olhos enormes, por todas as partes, por todas as ruas, becos e gretas das janelas. Olhos que não descansavam um segundo sequer. À noite, tudo dormia, menos os vigilantes olhos famintos.

Por essas e por outras que saía de casa só pra trampar e pra fumar, e isso porque em casa não era legalizado ainda, porque caso fosse, nem pra isso sairia, faria fumaça em casa mesmo. Já não gosta de beber, então não tem por que ficar saindo. Tomar uma só de vez em quando, cachaça é droga louca: já viu tia, amigo, conhecido, velho, novo, tudo morrer disso. Parecia uma praga de preto... Não queria isso para ele também. Já tinha atribulação demais na mente, e morrer cedo, aos poucos, vendo todo o rosto, mãos, pés e todo o corpo inchar feito um balão ao ponto de nem se reconhecer mais,  por mais atribulado que fosse, por mais cheio de b.o que estivesse, isso não estava nem em seus pensamentos.

A vida não era um mar de rosas, mas tava suave assim, dava pra levar, e tinha certeza que mais pra frente tudo ia melhorar. Ainda tinha alguma fé no futuro, por isso tinha muito cuidado para não estragar o presente. Tomar uma só de vez em quando.

Foi buscar um chá na casa de Rato, porquê o seu já tinha acabado, ficar de cara é paia demais, ainda mais quando provavelmente vai se bater com alguém, tem gente que só dá para lidar lombrado. Pivete Rato é parceiro das antiga, das antiga mermu, desde criança, cola junto sempre, em tudo. Só que o mal dele é que além de ladrão de isqueiro, o pivete ainda é mão de vaca pra disgraça, boca dimidê. Ivan fala na cara dele: as parada dele é tudo miada. Pega porque é da boa té, porque o maluco sempre tem e é parceiro, se não fosse por isso, pegaria com outro. Achava até que era melhor ter mais chá ruim do que ter pouco chá do bom. A cidade vive na seca, sem nada, tempo das vacas magras instaurada com sucesso, pode tá geral de cara, mas Rato sempre tem. Val faz jus ao vulgo mermu.

Aproveitou, e passou em um mercadinho perto da casa de Rato para comprar camisinha também, pois nunca se sabe…Vai que brote alguém do nada. Fazia tempos que não sabia o que era beijar na boca, e ter seu corpo tocado por outras mãos que não fossem as suas, mas também tava suave assim, não via bicho com isso fazia um tempo. Já chegou na fase de se obrigar a se acostumar com isso, até porque não havia muito o que se fazer. Mas como não gostava de mentir para si, mesmo que suas próprias mãos lhe proporcionasse o prazer, as vezes, do nada (não sabia ao certo porque, mas sempre aos domingos), permitia quase que recusando -bicho cismado- o coração amolecer um pouco, e a vontade de ser dengado, mamado, amado, batia forte.

Uma tia sempre lhe falava “Meu filho, o mundo é dos espertos”; e todas as vezes que esses sentimentos insistiam em invadir o seu já tão calejado e privado coração, Ivan logo se lembrava dessa frase, acendia um beck, ouvia um som que ajudasse a fugir daquelas neuroses, teletransportando-o para outro plano, e seguia, vivendo, procurando não se arriscar tanto no amor e no desejo. Era perigoso demais. No mundo já havia muita gente metida à esperta, e ele não estava totalmente recuperado para ser feito de besta, de novo.

Mais ou menos a uns 4 anos atrás, Ivan havia se envolvido com uma mina, que até então, parecia ser dahora. Jack, o nome dela. Jack era incrivelmente linda, feito uma pantera negra no meio da caatinga, e como tal, era bicho solto, toda malandra. Eles ficaram durante um tempo, mas só isso, foi longo o suficiente para Jack fazer do coração de Ivan, peteca, brinquedo. A brincadeira adulta da menina, fez machucar aquele homem-boneco preto. Vivia traindo o pivete nas entoca, até mesmo com quem ele chamava de parceiro, esculachava o pivete para as amigas. Vivia correndo pelo errado. Ivan podia até ser besta, mas sabia botar limites, e botou um fim na relação. Terminou assim que descobriu tudo.

Ser corno? Beleza! Mas manso aí já era demais pra ele. Fardo muito pesado para carregar. Deixaria isso para quem já estava acostumado. Jack conseguiu fazer com que Ivan acreditasse que o amor doía, que era melancolia, até, talvez. Mas na vida ou aprende a se acostumar com tudo, ou aprende. Não tem outra escolha. Pelo menos não para ele.

Poucos meses depois do tão breve relacionamento findar, Jack apareceu grávida. Sabe-se lá de quem, diziam. Nem ela mesmo sabia. A barriga tava enorme, e não tinha outro jeito, tinha de esperar a criança nascer para poder fazer os testes de DNA e saber quem era o pai. Quando então, a esperada Vitória nasceu, fizeram os testes só por precaução e pressão popular mesmo, porque a menina era a cara de Ivan, cagada e cuspida.

Ivan não esperava por isso, mas assim que viu aquela criança tão pequena, fruto de um relacionamento menor ainda, jogou fora todo e qualquer remorso que ainda sentia por Jack. Apesar de ter sido feito de corno, por ter sido machucado por ela, agora Vitória fez dele um homem melhor. Tava feliz em ver e saber que aquela criança que chegou ao mundo a tão pouco tempo era parte dele, e que apesar de tudo, seria muito cuidada e amada, por ele e por sua coroa. Por isso, trataria logo de se resolver com Jack. A menina também era filha dele e era seu direito como pai tê-la por perto. Daria tudo: cuidado, mucillon, casa, dinheiro-amor-vida. Só não queria que Jack envolvesse polícia e juiz no meio disso tudo, não precisava. Isso sempre dava em confusão. Vitoria hoje já tá grande, esperta, bonita. Quanto mais o tempo passava, mais parecia com o pai.

O achismo de Ivan não era à toa: a cidade de fato, era estranha, porque por milagre, quase que até divino, havia um quiosque aberto na praça com um movimento que tava mil grau. Havia tempo que Ivan tinha visto tanta gente junta... Assim que chegou, por mais ligeiros e curiosos que fossem os olhos de Binho, os de Ivan flagrou logo, bem antes, de imediato, aquele tão magro e negro corpo, ao longe metendo dança, ao som de O Kanalha, com a maloca toda reunida, e teve a certeza que aquele homem era uma das pessoas mais lindas que seus olhos já haviam visto.

Parecia ser uma pintura em movimento. Castelou na beleza daquele pivete, e lembrou-se que nunca se importou muito com essas onda de pegar homem, mulher, ser viado, gilete... Nunca achou que isso fosse capaz de pôr limites para o seu desejo, quem dirá para o seu coração. Que mal havia em gostar de homem também? E o que os outros tinham a ver com isso? Não devia nada a ninguém! Suas contas, suas dores, seu gozo, seu amor, tudo era dele, só dele, de mais ninguém. Cada um que cuide de sua vida! Ivan tinha medo de muita coisa, mas não temia o amor. O amor não.

Ainda de longe, Ivan via bunda para um lado, bunda para o outro, mãos com sinais numéricos pra cima, e no chão havia latinhas, litrão, bitucas, bêbados, tudo junto, espalhados, jogados. O furdunçu tava batendo certo! Ivan, assim que viu Binho, cuidou logo de não desgrudar o olhar para não perder de vista aquele gato preto que ele deu a sorte de encontrar naquela noite. Mas também tinha que ficar de quebrada, na dele, pra não dar muita pala e alguém pegar a visão, além de quem ele queria que pegasse. Nessa cidade os olhos são curiosos demais. Vai que o homem fosse de alguém... Não queria confusão.

Ele, que nem de roupa trocou antes de sair porque não queria demorar, foi encostando aos poucos para perto do quiosque como quem não queria nada, até achar uma mesa mais de canto. Sentou, e logo Seco e Vavau veio lhe dar um salve. Pediram logo um litrão de Devassa, e sentaram também. A maloca tava toda reunida, e os que sabiam dançar, diferente dele, estavam mais próximos do quiosque, metendo dança. Mas como ninguém tem corpo e coração de ferro, a piveta dona do quiosque botou Raquel dos Teclados para tocar, pra geral descansar um pouco o corpo e amolecer o coração. Ela que saia no lucro no final. Botar Raquel, Toque Dez e outros é a mesma coisa que fazer uma reunião com os que sofrem, os corno e os que temem o amor, e se deixar, bebem a cachaça toda do lugar. Nessas horas, para Ivan, o amor parecia, de fato, ser melancolia. Quanto sofrimento havia naqueles incontáveis litros de álcool, apenas pensava...

Depois de um tempo, Binho sentiu a marola subir, procurou apressado de onde vinha, e flagrou a presença de Ivan fumando, ao longe, na mesa escura debaixo de uma árvore. E como vereador que era, foi logo dar um salve nos outros pivetes usando como desculpa para se achegar mais e ver quem era aquele, que mesmo que ainda não soubesse, estava lhe comendo com os olhos já tinha tempo. Embora Ivan não soubesse quem Binho era, ele já estava flagrado, seu flerte conhecia a cidade toda. Já tinha ouvido falar do que tinha rolado entre Ivan e Jack. Todos sabiam..

Pediu um copo, puxou uma cadeira que tava mais de canto, esticou a mão na direção de Ivan pedindo só com os olhos um trago do baseado, e em segredo, também o seu beijo. Depois desse gesto escrotamente simples, Ivan e Binho passaram grande parte da noite parecendo que iam beijar um ao outro só com os olhos, que iam rasgar as roupas, o peito, e devorar um ao outro por inteiro, por completo, tudo alí mesmo, no meio da rua. E foi o que aconteceu. Depois de uma cerveja, da mesa do bar, Binho e Ivan foram parar na cama.

E a partir desse dia, o desejo quente e avassalador que Binho, mesmo sem perceber, foi deixando seu corpo e coração criar por Ivan tornou-se insaciável. Não importava o horário: era em casa, na rua ou no trabalho. Tinha fumaça, tesão, bunda grande e pica dura, o tempo todo, toda hora. Ivan que por muito tempo acostumou-se apenas com o prazer de suas próprias mãos, e que para ele era o bastante, agora tornou-se incansável. Bebia um copo d’água para poder ficar hidratado, pegava um ar, e sempre, sempre voltava para cama para poder dar outra. Para entrar num looping infinito. Ele, que de tão cismado, entregou-se logo de cara, por completo ao corpo-coração de Binho, que sem medo nenhum, fez o mesmo. Parecia que se conheciam e estavam juntos há décadas. A partir desse dia, tudo entre os dois se tornou exagerado, desde o amor ao gozo. E mesmo com pouco tempo de relacionamento, a casa de Ivan havia se tornado o lar de Binho. Passava mais tempo lá do que em sua própria casa.

Por mais novo, curioso, diferente e até nojento que fosse a união entre eles para toda população daquela pequena cidade, ninguém nunca os incomodava. Nem pastor, nem parente, ninguém! Sempre olhavam, encaravam, estranhavam, mas não falavam nada. Geral, de toda e qualquer quebrada gostava e respeitava Binho, que quem ainda não conhecia, logo aprendeu a fazer o mesmo com Ivan. Não apenas por ele ser bom, mas pelos contatos que tinha. Sabiam também que Binho tinha muita bondade no coração, mas quando precisava, faria o que quer que fosse para defender a si e os seus, qualquer coisa mesmo.

Uma noite, Ivan e Binho estavam de quebrada no bar de Seu Roque, quando um maluco, depois de ter enchido o cu de cachaça, começou a perturbar no ambiente, deixando o clima desagradável. Quebrou uns copos, derrubou umas cadeiras, procurou brigas...até achar. Andou em direção a porta, parou em frente a mesa de Binho e Ivan, e disse que iria embora porque não gostava de ficar em lugar que tinha viado. Binho nem precisou falar nada, só olhou para uns pivete que também estavam na hora, que logo encheram o maluco de porrada, e botaram pra sartar pra casa. Depois de tanta porrada, não se sabe se acertou o caminho de casa aquele dia. Binho tava pouco se fudendo se o maluco estava bêbado.

De início, Ivan não entendia muito bem como Binho era capaz de conhecer e ganhar o respeito de tanta gente assim. Mesmo sem nunca ter se envolvido, sem nunca nem ter levantado bandeira de nada, os pivete o tratavam como irmão, aliado. Ivan tava ligado que não precisava disso para ser respeitado, que logo foi se acostumando aos poucos, assim como fez com tudo que acontecia em sua vida. Ele gostava disso tudo. Binho sempre lhe trazia a sensação de proteção. Quando estava com ele, não havia medo algum.

 ...

A janela aberta fazia com que a lua clareasse todo o quarto e a pele preta nua de Ivan com sua luz prateada, hoje não tão brilhante como antes. Não sabia se era devido a garoa, ou se eram seus próprios olhos que haviam embaçado, que já não havia mais brilho nenhum. A lua estava meio fosca, apagada. Ele mesmo sem muita força, levantou da cama já bagunçada, já até sem o lençol de elástico, que saiu de tanto ele virar para um lado e para o outro, inquieto, sem conseguir dormir, sendo corroído pouco a pouco pelas entranhas, da mente até o coração, dia após dia pela insônia. Iria acabar morrendo de sono ou exaustão um dia. Ivan tenta procurar em sua falha memória quando foi a última vez em que conseguiu dormir, em que conseguiu fechar os olhos para além da tentativa de não querer enxergar o que via em sua frente. Teria sido a uns dois dias atrás? Ou três? Três... Três dias!

Queria tanto dormir, mais tanto. Não aguentava mais ter que lidar com sua mente perturbada funcionando em total alerta 24h por dia, só para si. Para o mundo ele estava inerte já havia um tempo. Nem fumar, que antes lhe deixava tão suave, com corpo e mente relaxados, era capaz de fazer isso mais. Não tinha lombra que fosse forte o suficiente para conseguir fazer sua mente descansar. Quem sabe a ninja faria, pensou algumas vezes…

Queria tanto dormir, embora tivesse medo até de seus próprios sonhos. Achava que por isso não dormia. Parecia que quando conseguia cochilar, pregar os olhos por um curtíssimo período de tempo, estava sendo hipnotizado, perseguido pela Hidra, que lhe arrastava rápido ao encontro do abismo de seu próprio ser, de seus próprios pensamentos. O que será de mim? Pensava, enquanto sentia o corpo extremamente cansado, fraco, como se tivesse sacos de cimento em cada um de seus ombros, empurrando todo seu corpo - já bambo - em direção ao chão. Mas fazia de tudo para não cair, para não voltar para a cama. Não queria isso. Queria mesmo era sair, abandonar aquele quarto, aquela casa, aquela cabeça, aquelas memórias-vida. Queria largar tudo. Queria mesmo era não ter medo.

Ivan para em frente ao espelho, repara em todo o seu corpo nu, em como estar mais magro do que nunca, com os olhos mais fundos e escuros como nunca antes, se olha, percebe-se face do cansaço, com um olhar vago, perdido no quarto, vê no reflexo Binho sentado na cama. Se assusta, olha rápido para trás e não vê ninguém.

Ao ver Binho, lembra de como era confortável senti-lo chegando por trás enquanto se arrumava em frente ao espelho. Lembra e até sente o corpo de seu homem encaixando no seu, parecendo serem as duas únicas peças de um quebra-cabeça, feito uma para a outra. Desliza as mãos pelos braços, aperta forte, abraçando a si próprio, lembrando da sensação de segurança e acalanto que os abraços de Binho lhe traziam, e de como a respiração e sussurros dele em seu ouvido o faziam arrepiar tudo. Inspira por uns longos segundos, e chega a sentir o cheiro forte de Binho. Será que ele não estava mesmo ali? Pensava, enquanto procurava esperançoso o seu homem no quarto. Olhou para os quatros cantos, nada.

Um dia desses jurou ter visto na mesa da cozinha, sentado, ereto, quieto, com os olhos fixos e distantes, olhando para o quintal. Andou rápido em direção a cadeira que Binho estava, mas não havia ninguém. Onde ele havia ido? Porque não demorou mais? Porque não ficou para sempre? Perguntava em voz alta, embora fosse para si próprio, agitado, agoniado, mergulhou num intenso sentimento de frustração, enquanto andava por toda a casa, para um lado e para o outro, sem parar.

Olhou novamente o espelho, e viu ao fundo, em cima do guarda-roupas, o capacete de Binho. Firme, segurou o corpo, o choro, enquanto lembrava de todas as vezes em que saiu com seu homem de moto nas ruas e matos adentro. Lembrou de todos os corres que iam fazer, onde em todas usava aquele capacete preto com o adesivo da Cyclone e outro da folha da maconha. Lembrou de todas as fugas que já deram dos homi, de quanto Binho lhe mandava segurar firme na cintura, porque ele iria acelerar, não iria frear nos quebra-molas, lembrou de todos os cantos que foram, e das leves quedas que já levaram juntos. Por mais que tivesse tentado, não conseguiu segurar o choro-vida ao lembrar da sensação de estar grudado no corpo de seu homem, sentindo o seu cheiro, o calor de sua pele, sentindo o vento forte batendo no rosto enquanto a moto parecia estar flutuando nas nuvens. Binho conseguia fazer Ivan de fato, sentir-se livre e seguro, por mais em perigo que estivessem. Com Binho, Ivan nada temia.

A insônia tava lhe corroendo já tinha um tempo. Uns dias atrás, depois de várias tentativas falhas de dormir, já suado, impaciente, resolveu  bater perna nas ruas-labirintos. Vestiu uma berma que estava jogado no chão do quarto próximo a cama, pegou o pacaia, o isqueiro, e saiu. As ruas estavam estranhas, vazias. Não tinha certeza se sabia andar por elas ainda. Cada canto parecia muito diferente, parecia faltar alguma coisa em tudo, embora tudo estivesse do mesmo jeito que estava antes de ter se malocado em casa por não sei lá quantos dias, meses se pah até… Não lembrava exatamente. A garoa que estava caindo esfriando a pele, o fez lembrar do dia em que Binho saiu, e não voltou mais.

Era outono, a noite estava fria tão como aquela, com a garoa fina, cobrindo tudo, arrepiando todo o corpo. Naquele dia, Ivan e Binho estavam fumando uma vela de uma natural que fizeram o corre numa cidade vizinha, deitados numa rede na área no fundo de casa.  A mistura de lombra e frio, bateu à vontade em Binho de fazer um café. Olhou no pote na cozinha, no armário, mas havia acabado. Resolveu encostar numa vendinha que havia numas ruas atrás de sua casa para poder desenrolar o pó do café, talvez estivesse aberta ainda.

-Quando for sair pega o casaco, Binho. Tá em cima da cadeira lá no quarto. Tá frio. Pode cair uma neblina quando tu tiver indo

-Relaxe meu nêgo, tá suave, vou assim mermo. Vou só pegar a carteira e vou, não demoro não…

 ...

Enquanto caminhava pelas ruas vazias, percebe um barulho, bate a mão no bolso da berma, e encontra umas moedas. Resolve passar lá em Seu Roque. Apesar de antes não beber, agora pediu uma dose de Pitú, pra ver se aquele líquido quente lhe trazia um alívio, mesmo sabendo ser fajuto. Não adiantava beber, nem fumar. O que aconteceu não saia por nada de sua cabeça, nunca sairia. Não tinha nada que fosse capaz de dar jeito nisso. As moedas deram para pagar duas doses, as várias outras mandou Seu Roque botar na conta, que depois ele passava lá pra pagar.

Levantou, e seguiu andando, dessa vez em direção para casa. Queria deitar, apenas. Era isso que seu corpo sempre pedia: cama. Naquele dia, voltando pra casa, com o cigarro de pacaia entre os dedos, sentiu estar sendo observado, acuado, sentia que a cidade lhe assombrava. Todos aqueles becos escuros lhe causavam medo e melancolia. Parecia que todas as construções lhe sussurravam ensurdecedores gritos. A cidade cheirava a morte. Enquanto andava cambaleando, quase caindo, olhou a parede de uma casa abandonada, e viu “Eterno Binho” pixado. Imediatamente, uma avalanche de lembranças de tudo que viveu com Binho invadiu sua cabeça, deixando a vista turva, o corpo mais fraco do que já estava. Respirou fundo e tentou acelerar o passo para casa, antes que caísse no chão ali mesmo, desacordado, no meio da rua, de madrugada.

Saiu da frente do espelho, fez um cigarro de pacaia, e sentou-se na cama próximo a janela. Enquanto tentava acender o cigarro, sentiu algo pesado afundar o colchão ao seu lado. Tentou não pensar que aquilo fosse real, que fosse apenas uma impressão. Acendeu o cigarro, tragou como quem traga a vida. Segurou por uns segundos, enquanto olhava para a rua através da janela, ainda torcendo para que aquela sensação de que algo ou alguém estava sentado ao seu lado na cama fosse apenas coisa de sua cabeça. Soprou a fumaça para fora, aproveitou os quase dois segundos de coragem que lhe invadiram, e olhou rápido para o lado. Não havia ninguém. Respirou fundo, aliviado.

Levantou, caminhando em direção a cozinha para tomar água. Aquela sensação de estar acompanhado mesmo estando sozinho em casa lhe causou uma secura na boca, enquanto o corpo suava frio e o coração disparava, parecendo querer rasgar o peito. Botou o copo na pia, pegou a toalha que estava pendurada na porta da cozinha para poder bater um banho, e ver se conseguia dormir um pouco. Queria tanto poder conseguir dormir…

Ao entrar no banheiro, viu Binho na sua frente, em pé, estático, sem camisa, com o peito e rosto completamente ensanguentado, furados, rasgados, com as mão amarradas para trás, tão como estava nas fotos que viu no celular no dia seguinte em que ele saiu para comprar o pó de café, e nunca mais voltou. O corpo de Ivan, embora tremesse muito, não conseguia se mexer. Sentia-se preso ali, no chão frio daquele banheiro.

Assustado, enquanto olhava fixamente para Binho, ouviu sua voz baixa, como falava quando sussurrava nos seus ouvidos quando lhe abraçava por trás, dizendo: “Não tenha medo, meu amor!”. A imagem de Binho dissolveu-se, imediatamente Ivan sentiu uma mão gelada apertar forte o seu ombro por trás enquanto sentia uma respiração ofegante no seu pescoço. Ivan sentiu todo o corpo arrepiar, o sangue correndo nas veias parecia ter gelado, e assim como fez enquanto fumava sentado na cama, aproveitou os poucos segundos de coragem que teve para olhar pra trás.

Dessa vez era Binho, ali, em pé, segurando o seu ombro. Ainda nu e descalço, Ivan saiu disparado em direção a porta de entrada de casa, abriu rápido, e saiu correndo, desesperado pelas ruas-labirintos vazias e molhadas, gritando aterrorizado, como se estivesse sendo perseguido pela Hidra. 




Samuel da Cruz Costa; Janeiro de 2022


Baseado na track Não Tema Amor do EP Canto dos Malditos (Aganju e Troll)




Sobre o autor:

Samuel (@samuuueeeeeel) é um jovem homem preto, escritor e poeta, natural de Nova Itarana-BA, entretanto mora em Feira de Santana-BA, onde estuda Lic. em História. Envolvido com a arte, principalmente da escrita, desde a adolescência, participou de eventos e movimentos literários ainda na escola, onde em 2018 foi premiado em 1° lugar no Projeto TAL (Tempo de Arte Literária) da rede de ensino estadual da Bahia. Samuel acredita na escrita enquanto uma das várias tecnologias de guerra e libertação do povo preto, e é por meio dela, que além de chorar e denunciar no papel as desgraças que o povo preto vive na diáspora, principalmente nas áreas 75, também escreve sobre os sentimentos que atravessam a sua própria vida.




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