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  • Aganju Uh Anti Influencer

Óleo e Garoa



Cachoeira - BA

Agosto de 2013


Desde pequeno nunca temi o fogo. No mês de Junho as chamas tomavam conta do meu mundo através das fogueiras que iluminavam e aqueciam meu bairro. Na época as ruas ainda de terra ficavam repletas de brasa, cinzas e batata doce assada. Eu era um incendiário e o cheiro do fogo me atraia muito. Mesmo me queimando algumas vezes, nunca deixei de brincar com o fogo, de pular e segurar a brasa na mão.


Quando era criança nunca temi relâmpagos, muito menos trovões. Lá no sertão, onde nasci, quando os relâmpagos alumiavam as noites , anunciavam o inicio de chuvas fortes. Os cágados chocavam seus ovos , a luz elétrica faltava e os mais velhos cobriam os espelhos. No entanto, enquanto todos se escondiam , eu escapava com meus primos correndo pelos matos e pelas ruas cheias de lama. Quando voltávamos já quase na boca da meia noite, minha Vó nos secava, alimentava e não deixava minha mãe me bater, já que segundo ela : bater em criança em noite trovejando atraia mau agouro pra família.


Também nunca tive medo de água: rio, rego, lagoa, córrego, riacho ou cachoeira, no verão ou inverno, não importava, lá estava eu na água até os dedos enrugarem e a barriga ficar dura de tanto beber água. Minha Vó sempre fez vista grossa as minhas aventuras pelos rios e lagoas de meu bairro e, quando certa vez engoli um pouco a mais de água do que de costume e tive que ficar uns dias no hospital , minha Vó “ acalmou” minha mãe dizendo:


- Calma minha Fia não se preocupe, esse menino num vai morrer de raio, de fogo nem de água, ele vai morrer de queda.

- Cremdeuspai, mainha ! tá amarrado em nome de Jesus !!


Os anos se passaram e no sertão as crianças negras tornam-se homens-bichos cedo. Eu não fugi dessa maldição e com 12 anos já tava descarregando carga em supermercado. Aos quinze anos, já há muito tempo distante da escola, comecei a trabalhar de servente de pedreiro, batendo massa e pintando casa com um dos meus tios (ele herdou esse oficio do pai dele e, seguindo a tradição passou os ensinamentos pra mim) .


Quando fiz 21 anos fui trabalhar como peão em uma empreiteira que construía unidades do programa “ Minha casa minha vida”. Durante três anos viajei por várias cidades da Bahia trabalhando em canteiros de obra. Além de trabalhar pra disgraça, nos finais de semana tava sempre procurando uma festa pra comer água ou uma xota pra meter. Não necessariamente nessa ordem, mas tudo ao mesmo tempo a maioria das vezes.

...

Foi na micareta de feira de Santana que conheci Edna. Tava passando o trio de Ed City tocando com os graves batendo tudo . Aquele batifum do Grove arrastado , milhares de pessoas desciam a avenida “ coreografando” uma espécie de dança marcial , trocando fintas, gingas, socos , pontapés e , até facadas . Esses “ batifuns” muitas vezes tornam-se brigas generalizadas que arrastam a multidão em movimentos espirais destruindo tudo ao seu redor e arrastando quem não tem nada a ver pra dentro confusão.


Edna tinha golpeado com uma gilete o rosto de um cara. Só que o filho da puta era polícia, e quando viu o sangue escorrer puxou a peça e disparou a esmo na multidão. Os tiro não atingiram ninguém, muito menos Edna, que a essa altura já havia pinotado em direção as barracas de bebidas que ficavam nas ruas transversais a avenida que o trio passava.


Registrei toda cena da barraca do cravinho e, quando Edna passou do meu lado fugindo de seu perseguidor, voltou derrepente e me deu um longo beijo na boca, ao mesmo tempo em que pegava no meu pau por cima da bermuda de veludo da Cyclone. Instantes depois o policia brotou no beco das barracas de drinks, com arma em punho, sangue escorrendo nos olhos, totalmente desorientado, apontando a arma pra todos os lados intimidando as pessoas a seu redor gritando:


- Cadê aquela puta?Cadê disgraça!!???

Sem repostas, xingou mais um pouco e sumiu no meio da promiscuidade distópica da micareta de Feira de Santana.


Edna tirou a mão do meu pau, assim como a língua de minha boca e disse :


- Ô pai, desculpa, quase que te meti em confusão. Vou te pagar uma cerveja viu, nêgo?


Não sei se foi o nervosismo ou a raiva que tava porquê quase fui arrastado pra uma laranjada, mas peguei a mão dela e coloquei novamente no meu pau que tava latejando de duro:


- Agora você vai ter que me dar essa buceta, sua puta.


Ela não disse que sim, muito menos que não. Apenas sorriu, mordeu levemente os lábios, pegou minha mão e me guiou pras ruas nas imediações do Mercado de Arte de Feira de Santana. Trepamos ali mesmo na rua sem ao menos sabermos nossos nomes e naquele dia, comendo Edna de quatro no alambrado do mercado de arte de Feira de Santana soube no meu íntimo que ia amar aquela mulher. E, apesar de nos anos que moramos juntos, Edna nunca ter dito que me amava, toda vez que ela gozava e gritava: “ Me chama de puta, disgraça” entendia que era sua maneira de dizer que me amava.


- Também te amo, Edna. Sua puta


- IIIiiiiiiH oiia qui onda desse negão! Beijou o cu do diabo e ta vendo bicho. É o que disgraça??!! Que me dar o cu é? Sou homi vuh porra


- se fuder, disgraça ! tá viajando é?!


- eu tou viajando? Você que ta dizendo que me ama.

Num ta segurando a lombra não em?


“ foda-se! Vou dar outro tapa” . Dou outro beijo profundo no cu do diabo e antes que o “ Gordo” fale mais alguma merda passo pras mãos dele o isqueiro e o cachimbo improvisado que fizemos com uma lata de cerveja. Ele se cala imediatamente , ou pelo menos não o escuto mais, já que agora ouço apenas um zumbindo permanente em meus ouvidos .E, tal qual o deslizar de dedos na tela de um celular , o filtro do Instagram muda e passado -presente misturaram – se de forma sinestésica diante de meus olhos .

..

Somos uma coalização de párias, uma matilha de lobos Betas. Espectros declinados a violência e ilegalidade, embrenhados nas zonas fronteiriças do submundo da “ cidade heróica”. Todos pretos, pobres, imundos e mentalmente instáveis. Somos três sacizeiros compartilhando algumas gramas de crack no saguão principal do que restou da antiga estação ferroviária de Cachoeira.


A estação foi fundada em 1876, quando ainda nem mesmo existia a Ponte D Pedro II, que só veio ser Inaugurada em Julho de 1885. O saguão gigantesco com teto em formato de abóboda, apesar do aspecto de ruínas ainda mantém boa parte de sua estrutura arquitetônica original. No entanto, apesar de toda relevância histórica, nosso “escritório” é um ambiente fétido , onde excrementos de pombos, morcegos, de ratos e humanos, se misturam a centenas de embalagens usadas de camisinhas, latas de cerveja, isqueiros, taliscas de fósforos , roupas rasgadas e uma infinidade de lixo.


Além de mim são dois caras . O “Gordo”, que ainda carrega um apelido que não faz mais jus ao seu aspecto esquelético. Ele já foi frente do crime organizado da cidade. Isso há décadas atrás, quando era cada homem com sua peça, defendendo seu saco de droga. De vez em quando tinha alguns desacertos e os caras trocavam tiro. Mas não como hoje que é uma guerra doentia que tem atravessado gerações e matado até crianças.


Os maloqueiros mais velhos contam que o Gordo resistiu o quanto pôde. Formou bonde, trocou tiro, mas no fim teve que se adaptar ao novo ecossistema do crime organizado da Bahia. A maioria que era do crime ingressou nas novas siglas, ou até se aposentaram. O gordo sobreviveu e tornou-se uma espécie de lenda urbana no submundo da cidade. Uma anedota pra ilustrar uma história de fracasso e covardia na vida do crime.


O outro cara é o Seu Juca: um sacizeiro das antiga. O coroa tem a cor da pele extremamente preta e cabelos crespos brancos que o deixam com aparência de centenário. No entanto, tem apenas 48 , sendo 20 deles dedicados a fumar pedra. Seu Juca é o mais velho entre nós em idade, assim como no uso do crack. Ele chegou em Cachoeira há uns cinco anos atrás, na época ele já fumava pedra a mais de quinze anos. É uma espécie de andarilho: já viveu nas Cracolândias de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo.


Também fumou muita pedra nas ruas de Belém do Pará e São Luis do Maranhão. Esse seu nomadismo chamou atenção ate da mídia televisiva e Seu Juca apareceu no programa profissão repórter como o “ Nômade do Crack” . Os 2 minutos na TV aberta rendeu fama nas ruas, o que foi bom por um tempo pois possibilitou algumas gramas a mais de crack.

...

Todo mundo já deu sua “sua tapa na disgraça", “ Trago”, “ pega”, “ beijo”, “ “ mordida” , cacetada”, são várias nomenclaturas para o uso de uma mesma substância. A porra da lombra vem rápido perseguindo com ferocidade sua presa; sua alma . Segundos depois do primeiro trago seu raciocínio acelera, o batimento cardíaco a milhão, pressão arterial as alturas, pupilas dilatadas, suor nas mãos. Depois disso são de cinco a quinze minutos de torpor e delírio, como se fosse aquela gozada que você dá depois de ficar muito tempo sem trepar ou bater uma, só que é melhor ainda, porquê você acaba “ esporrando” pedaços de sua dignidade. Só que depois que passa o “ gozo” vem a parte mais avassaladora da lombra: uma sensação de extrema depressão . Cê fica vendo bicho, tipo aquela sensação de soco no estômago, que faz você perder o ar e achar que vai morrer, mas você não morre, continua vivo, ainda que em pânico.


Fumamos muito óleo. A lombra veio e já voltou. Assim como o medo profundo, as depressões, neuroses e lembranças traumáticas revividas em looping. Uma coisa que ninguém fala é que quando se fuma muito óleo, dá uma vontade quase sexual de cagar: e cagamos pra porra . Perdi totalmente a noção de tempo. Por quantas horas estamos nessas ruínas? Quantas gramas já fumamos? Quantas vezes cagamos e limpamos nossas bundas com os trapos imundos jogados no chão, que com certeza foram usados por outros sacizeiros antes de nós? Agora que me dei conta que Seu Juca e o Gordo saíram fora. Disseram que iriam fazer um “corre” pra conseguir mais óleo . Filhos da puta! Devem ter ido fumar escondidos isso sim.


Tou sozinho nas ruínas do saguão principal da antiga estação ferroviária de Cachoeira. Agora além de mim apenas os ratos se esgueirando, ou esperando que eu adormeça pra me devorarem. Bote fé, sei que parece conversa de sacizeiro mas já rolou dessas. Teve um crackudo que morreu assim. O nome dele era “ Angolano”, foi um os primeiro sacizeiro a acampar nas ruínas da estação ferroviária de Cachoeira.


Um dia encontraram ele todo mordido de rato. Tava sem partes da boca , os olhos furados, buracos nas bochecha, rasgaram a garganta, comeram partes do coração, pulmão e também intestinos. A porra dos rato comeram até o pau do negão e não perdoaram nem a bunda dele. Tipo todo regaçado mesmo. Os sacizeiro que encontraram o corpo do “ Angolano” disseram que quando chegaram tinha bem uns cinquenta rato encima do cara.

O corpo tava onde funcionava os antigos guichês da estação ferroviária. No entanto, há anos atrás esse espaço , assim como outros sub-anexos, tinham sido emparedados pela administração da ferrovia. O “ Angolano” num quis nem saber e com o decorrer do tempo arrombou a parede pra poder usar o óleo malocado. Só que a maloca já tinha dono, que era uma legião de ratos, que devoraram o “ Angolano” quando adormeceu doidão de bombinha e pedra: se fudeu!


...


É mês de Agosto e a cidade é tomada por uma atmosfera sepulcral. Madrugadas silenciosas, onde só se ouve pingos das chuvas, ou aquele silêncio ensurdecedor quando para de chover e a neblina estrangula toda cidade.


São três da madrugada e literalmente eu vejo tudo e ninguém me vê. Estou caminhando sem rumo pelo centro da cidade, nas ruas margeadas por fachadas de casarões coloniais e igrejas barrocas. Quando me dou conta já estou descendo a ladeira do casarão da Irmandade da Boa morte, que culmina em uma encruzilhada. Viro à esquerda e sigo em direção à praça 25 de Junho, um dos principais “points” da vida noturna da cidade. Há apenas algumas pessoas bebendo em um dos poucos estabelecimentos que ficam abertos a essa hora da noite: o bar de Paulo Lombra, que é também uma espécie de mercearia, que vende de tudo: papel higiênico , brinquedo de criança, miojo vencido e cocaína.


O bar fica na parte térrea de um cinturão de casarões centenários em ruínas que pertenceu à Sociedade Monte Pio dos Artistas Cachoeiranos (SMAC), fundada por trabalhadoraes-as negros na segunda metade do século XIX . Hoje no século XXI as propriedades do Monte Pio tão tudo na mão da aristocracia falida de Cachoeira, ou seja, famílias brancas descendentes diretas de senhores de escravos, que herdaram de seus antepassados a cor de gala seca, o ódio silencioso, ainda que intenso contra gente preta, além de casarões, ruínas e alguns hectares de terras improdutivas, tudo isso fruto de grilagem de terras, escravidão e artimanhas judiciais.


As poucas pessoas que estão no bar são um grupo de universitários brancos do curso de cinema da UFRB, tomando cerveja, licor e fazendo um samba mal feito nas mesas do lado de fora do Bar-mercearia. A algazarra que fazem é paralisada por alguns segundos quando todos escutam Paulo Lombra gritar lá de dentro:


- vá sacizar em outro lugar disgraça!


Antes de eu mandar ele tomar no cu, percebo que o samba de merda dos universitários parou – graças a Deus - e logo em seguida, escuto uma voz com certo tom de “heroísmo”:


- que isso companheiro Paulo? como é que fala assim com um trabalhador ? Nós da União de Estudantes Revolucionários não apoiamos esse tipo de fala fascista, muito menos um estabelecimento fascista. Se você não se desconstruir vamos organizar um boicote ao seu estabelecimento!


- Bote esse sacizeiro no colo e leva pra casa então, disgraça!!


Por incrível que pareça foi meio o que aconteceu. Os universitários me “ acolheram” em seu samba tosco sem ritmo, pagaram cerveja, tira gosto, botaram uns becks e até um pino de raio que juraram que era da Colômbia. Inventei logo uma história comovente dizendo que estava na cidade a procura de minha mãe que não via a mais de 10 anos, só que não a encontrei, perdi o horário do ônibus pra Salvador e não tinha o que comer, muito menos onde dormir.


Minha atuação dramática deu certo já que agora estou na “república” dos universitários. A casa é na área central da cidade, a poucos metros da Igreja Matriz, mais especificamente em frente, só atravessar a rua, Casa 14. A fachada colonial, com portas e janelas enormes, escodem uma estrutura interna maior ainda. No térreo há uma sala gigantesca, uma cozinha daquelas do Big Brother, além de um quintal cimentado onde fica o “ quarto de empregada”, que os universitários disseram que transformaram na sede da tal União dos Estudante Revolucionários. No segundo andar, são os cinco quartos e uma espécie de sacada interna, onde pode se ver a sala do térreo.


Já são cinco da manhã e as ruas ainda estão escuras e repletas de garoa . No casarão todos adormeceram e estão em seus respectivos quartos. Estou andando silenciosamente pela escuridão da casa roubando notebooks, câmeras fotográficas de última geração, celulares e qualquer coisa de valor que possa trocar por óleo. São uns Universiotários mesmo. Proletário Uni-vos minha pica, já viu trabalhador morar em uma mansão dessa?! num fode, porra.


Quando estou prestes a sair, apenas terminando de arrumar todas as coisas que peguei pela casa em uma mochila de camping, alguém abre as duas partes da enorme porta da frente:


- Oi gente, cheguei do capão agora! Tem alguém acordado? Me ajudem aqui com essa bicicleta por favor....



A pessoa em questão é uma jovem branca, cabelos ruivos, olhos verdes, com aquelas roupas de bicho grilo, vestido com estampa indiana e sandália de couro. Ela empurra com dificuldade uma daquelas bicicletas de trilha que valem mais que uma moto e nas costas tem uma mochila de camping cheio de compartimentos. Por alguns segundos ela fica em choque quando me vê na sua enorme sala de estar, sobretudo, por estar terminando de colocar um celular roubado dentro de uma mochila.


Antes que ela possa gritar dou um soco no estômago da filha da puta e , enquanto ela perde o ar com o golpe, dou logo uma bicuda em seu rosto, arremessando-a pra calçada em frente da casa, já cai desmaiada. As luzes dos quartos começam a ascender, todos acordaram por causa do barulho. Pego a bicicleta caída no chão e saio pedalando pela densa garoa que abraça a cidade heróica que fede óleo .


[1] Esse conto é dedicado a memoria de Ubiraci dos Santos (Birró)



Ouça agora a track Óleo e Garoa:



Sobre o autor:


Aganju Uh Anti Influencer ( @aganju_dref) Nascido em Livramento de Nossa Senhora-Ba e radicado a mais de 10 anos em Cachoeira-Ba, onde desde o ano de 2011 contribui na articulação de Cineclubes comunitários e na disseminação da Cultura Hip-Hop nas periferias urbanas da cidade. Atualmente Aganju é um dos impulsionadores do Comitê de Solidariedade Popular Covid-19 – Cachoeira-Ba, instância organizativa comunitária articulada pelo Cine do Povo. Aganju é homem preto, pai, professor de história, pesquisador, bibliófago, educador comunitário, escritor, beatmaker, Mc do grupo de Rap Us Pior da Turma e idealizador do UNIVERSO 75.

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