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  • Sávio Oliveira

Resenha — MIXTAPE O BOOMBAP ESTÁ MORTO: a ressurreição do modo bombepeano de existir

- Sávio Oliveira


Lançada no dia 25 de dezembro de 2020, a mixtape “O Boombap Está Morto” foi às ruas em todas plataformas digitais diretamente pelo Ibori Studio. Mas para chegar até a mixtape, é preciso contextualizar a cena e entender o porquê dessa morte supra-anunciada.


O Boombap é reconhecido como subgênero do rap e se concebe mais propriamente enquanto modo de vida underground de se fazer arte quanto, em contraste, à lógica estrutural do jeito musical de instrumentalizar vivências. Influenciadas por KRS-ONE e sua primeira criação musical, intitulada “O Retorno do Boombap”, anos depois, o Recôncavo Sul baiano, na contramão sistêmica da indústria musical brasileira, afirma incognitamente a morte do subgênero. Incorporadas na carga histórica, territorial, cultural e lírica dos artistas baianos, a mixtape chega com dois pés na porta retomando conceitos escassos atualmente sobre a filosofia do movimento estético político do Hip-hop na cena hodierna.


Estrategicamente, para problematizar o axioma do título, afirma-se a morte do subgênero que se personifica na insurgência do estilo boombap de ser e isso, o Universo 75 demonstra com originalidade. É preciso coragem para ir na contramão da indústria musical mainstream, inclusive no rap. Não é fácil dar a cara a tapa e romper com a forma musical generalizada: um disco, álbum, mixtape com duas love songs, dois traps, uma introdução com monólogo para parecer de rua, e o restante de boombap — quando ainda sobra espaço. O universo 75 tem confrontado com total referência, e na oportunidade afronta com o lançamento de uma mixtape inteira do subgênero — que de sub não se mostra ter nada — sem tornar o conjunto da obra cansativo.


Pelo contrário, no cerne da produção artística-musical, liricamente, cada artista mostra não encarar a música como um feat, mas a mixtape como um projeto de insurgência, fato que se consolidou em cada letra. Mais que uma mixtape, o universo 75 lança nas quebradas o projeto distópico em diversos sentidos, principalmente ideológico. Na contramão do surto coletivo do trap, onde diversos lançamentos em quesitos de flow, beat e personas se igualam e se imitam, esses artistas se posicionam estrategicamente em meio a tantos corpos sistematicamente enterrados, inclusive no rap. Essencialmente precisos em meio a imensidão de corpos sem vida resultados das políticas de extermínio, a obra fecha o ano de 2020 com o retrato preciso da cena e da sociedade.


Tal fruto da união de potências criativas é resultado da junção de diferentes estilos, localidades e flows. Os beats são assinados por Aganju Uh Anti Influencer, onde o Mc e beatmaker condensa em seus samples diferentes estruturas rítmicas que contrariam o título da obra demonstrando como boombap está mais que vivo. Aparentemente, cada Mc que compôs a obra compreendeu a responsabilidade de rimar sobre o processo de ressureição rítmica, colocando sobre os beats suas letras, seus traumas, suas distopias.


A primeira faixa é a apresentação da obra. Aganju Uh Anti Influencer não polpa palavras para introduzir e narrar poética e densamente a postura agressiva que a obra conterá. Seu flow versátil mistura, logo de início, a insurgência do subgênero ao responder a incógnita do título: como poderia estar morto o boombap, se o gênero musical é mais que o ritmo, é a base orgânica e instrumental de um estilo de vida e os poucos remanescestes ainda estão vivos e, inclusive, se localizam no universo 75.


A segunda faixa contém os letristas X-presso e Big Troll, e nela ambos cobram referências basilares para a cultura rap aos ouvintes do gênero cada vez mais polarizado e apropriado atualmente devido à escassez antológica. Na terceira faixa da obra, intitulada “Vida bruta”, a Mc Tulipa Negra constrói narrativas sincrônicas do passado e presente negro, especificamente acerca da condição das mulheres negras, caracterizadas pelas “Donas marias”. Tulipa finaliza a faixa, sob o som de um coro, com a declamação poética sobre as Donas marias, daquelas que todo gueto tem e deixando o gosto de quero mais aos ouvidos ansiosos por mais camadas de lifes boompianas.


A quarta faixa se chama “SAJ Dreams” e é encabeçada pelos Mcs Fungo e Val da Maloca. A dupla explora muito bem a densidade do beat para colocar em suas letras elementos de transcendência e maniqueísmos, onde a vida e a morte parecem estar amparadas por pontes cada vez mais solidificadas pelo sistema de genocídio construído na diáspora. Na faixa 5 os Mcs Neuronego e Billy Sujo descrevem os processos construtivos dos “Milhões de traumas”. Ainda nessa faixa, os Mcs discorrem acerca dos fatores mais recorrentes que deliberam o ódio contra as injustiças, ocasionando na redundância do cenário e estado mental traumático de quem vive em meio à guerra.


A sexta faixa é assinada pelo Kancer ADL que vai logo ao assunto, buscando consolidar as críticas à cena atual do rap, ao embraquecimento da cultura negra. O Mc utiliza do flow rápido para colocar diversas ideias sobre o beat que parece ser o mais versátil da obra.

O Mc Quadra Sul assina a sétima faixa, intitulada “A real”. Estrategicamente, sua posição em seguida de Kancer ADL parece ser a continuação do “papo reto” sobre a cena atual. Mostrando de forma ainda mais escancarada, o Mc narra a distopia de suas vivências, fator importante para a obra como um todo, onde cada Mc traz um pouco do recôncavo que vive, desenhando realidades e perspectivas liricamente distintas, mas uníssonas sobre a corporificação do modo boombap de existir.


Em tom satírico durante toda a faixa 8, os Mcs Dois AS e Neuronego surgem com personas super criativas, curtindo o beat e encaixando diferentes flows durante a música. O Mc Stevan inicia a faixa nove metaforizando o processo de criação musical, encarregando responsabilidade e culturalidade para se fazer o real rap. A obra se finaliza com a faixa dez, intitulada “Um crime”, com letra de Alenda SZ. O Mc concebe a proeza de relembrar para geral a doçura e lírica de uma love song de boombap bem construída. Poeticamente, Alendaz fala do amor preto, demonstrando que o estilo bombapeano de se viver também contém e em grande escala sentimento, amor e poeticidade. O looping infinito e condensado da criatividade. O seu flow trêmulo e sarcástico, pedindo sentença para o querer do amor põe as reticências necessárias para aguardarmos o renascimento, se é que se faz necessário, de um boombap mais que ressurreto na letra, ritmo e corporeidade dos seus poucos remanescentes.


De todo modo, esteticamente a mixtape demonstra ter se atentado aos parâmetros basilares do modo boombap. Os beats pesados são feitos por Aganju Uh Anti Influencer e as mix/masterizações a cabo de Billy Sujo. A capa da obra é mais uma das criações imagéticas do artista visual e amante do underground, Daltro, com a colaboração de Kael na arte gráfica. Além disso, o projeto construiu o ciclo de lives colaborativas da obra, para isso, direcionadas pela coordenadora de comunicação Mari Ferreira. Para alcançar a competência em cada fator da obra, a mixtape contou com uma grande equipe engajada para sua composição, sendo a colaboração 12 mcs, 5 home studios e contempla 7 cidades do recôncavo sul da Bahia.


De forma profissional e engajada, o universo 75 ultrapassa o conceito de ideia e se firma no intergaláctico de forma diferente. Seu espaço delineado pelos conflitos internos e externos se misturam ao tempo do beat. Seus planetas estão na cabeça de cada mc e cada um exprime na obra os seus próprios mundos. Entretanto, a ideia de estrelismos normalmente presentes em todo universo, ficam de lado e dão lugar ao projeto coletivo e colaborativo de mentes que anseiam o resgate da essência musical do sub e do próprio gênero rap.


O cosmo desse mundo idealizado sem utopias coloca esse universo anos luz de tantos outros universos imitados e limitados pelo capitalismo simbólico e sua industrialização. E se a natureza de cada ser existente nele depende da essência rítmica do underground, o universo 75 do recôncavo já deu ideia: “o boombap está morto, mais eu ainda tô vivo, é pau no gato, parceiro, não tem conselho mofio!”.



ouça a mixtape completa clicando aqui.



 

Sobre o autor:




Sávio Oliveira da Silva (@blackoutsavio ) , 22 anos, aspirante de marginal influenciador, estudante e amante de rap, principalmente local, cursa o VIII semestre de Letras Vernáculas na UNEB, é representante e fundador do Coletivo Afrodiaspórico na cidade de Ipiaú/BA.


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